quinta-feira, 18 de dezembro de 2008

O LIVRO DE ENOQUE

A EPOPÉIA DE GILGAMESH


TABUA QUE REGISTRA A EPOPÉIA DE GILGAMESH



A Epopéia de Gilgamesh

Prólogo
Gilgamesh, rei de Uruk


Proclamarei ao mundo os feitos de Gilgamesh. Eis o homem para quem todas as coisas eram conhecidas; eis o rei que percorreu as nações do mundo. Ele era sábio, ele viu coisas misteriosas e conheceu segredos. Ele nos trouxe uma história dos dias que antecederam o dilúvio. Partiu numa longa jornada, cansou-se, exauriu-se em trabalhos e, ao retornar, descansou e gravou na pedra toda a sua história.
Quando os deuses criaram Gilgamesh, deram-lhe um corpo perfeito. Shamash, o glorioso sol, dotou-o de grande beleza; Adad, o rei da tempestade, deu-lhe coragem; os grandes deuses tornaram sua beleza perfeita, superior à de todos os outros seres, terrível como um enorme touro selvagem. Eles o fizeram dois terços deus e um terço homem.
Em Uruk ele construiu muralhas, grandes baluartes, e o abençoado templo de Eanna, consagrado a Anu, o deus do firmamento, e a Ishtar, a deusa do amor. Olhai-o ainda hoje: a parte exterior, por onde corre a cornija, tem o brilho do cobre; sua parte interior não conhece rival. Tocai a soleira, ela é antiga. Aproximai-vos de Eanna, a morada de Ishtar, nossa senhora do amor e da guerra: é inigualável, não há homem ou rei que possa construir algo que se equipare. Subi as muralhas de Uruk; digo, caminhai por cima delas; observai atentamente o terraço da fundação, examinai o trabalho de alvenaria: não é feito com tijolos cozidos, e bem feito? Os sete sábios lançaram suas fundações.

1. A chegada de Enkidu

Gilgamesh correu o mundo, mas, até chegar a Uruk, não encontrou quem pudesse opor-se à força de seus braços. Entretanto, os homens de Uruk murmuravam em suas casas: "Gilgamesh toca o sinal de alarme para se divertir; sua arrogância, de dia ou de noite, não conhece limites. Não há pai a quem tenha sobrado um filho, pois Gilgamesh os leva todos, até mesmo as crianças; e, no entanto, um rei deveria ser um pastor para seu povo. Sua luxúria não poupa uma só virgem para seu amado; nem a filha do guerreiro nem a mulher do nobre; no entanto, é este o pastor da cidade, sábio, belo e resoluto."
Os deuses escutaram o lamento do povo. Os deuses do céu gritaram para o Senhor de Uruk, para Anu, o deus de Uruk: "Uma deusa o fez forte como um touro selvagem; ninguém pode opor-se à força de seus braços. Não há pai a quem tenha sobrado um filho, pois Gilgamesh os leva todos; e é este o rei, o pastor de seu povo? Sua luxúria não poupa uma só virgem para seu amado, nem a filha do guerreiro nem a mulher do nobre." Depois de Anu ter escutado seu lamento, os deuses gritaram para Aruru, a deusa da criação: "Vós o fizestes, oh, Aruru, criai agora um outro igual; que seja tão parecido com ele quanto seu próprio reflexo; que seja seu segundo eu, coração tempestuoso com coração tempestuoso. Que eles se enfrentem e deixem Uruk em paz."
A deusa então concebeu em sua mente uma imagem cuja essência era a mesma de Anu, o deus do firmamento. Ela mergulhou as mãos na água e tomou um pedaço de barro; ela o deixou cair na selva, e assim foi criado o nobre Enkidu. Havia nele virtudes do deus da guerra, do próprio Ninurta. Seu corpo era rústico, seus cabelos como os de uma mulher; eles ondulavam como o cabelo de Nisaba, a deusa dos grãos. Ele tinha o corpo coberto por pêlos emaranhados, como os de Samuqan, o deus do gado. Ele era inocente a respeito do homem e nada conhecia do cultivo da terra.
Enkidu comia grama nas colinas junto com as gazelas e rondava os poços de água com os animais da floresta; junto com os rebanhos de animais de caça, ele se alegrava com a água. Mas um dia, no poço, ele se viu frente a frente com um caçador, pois os animais de caça haviam entrado em seu território. Por três dias eles se encontraram frente a frente, e o caçador se intimidou. Voltou para casa com sua caça e permaneceu mudo, paralisado de terror. Seu rosto estava alterado como o de alguém que retorna de uma longa viagem. Com o coração cheio de pasmo, ele falou a seu pai: "Pai, há um homem, diferente de todos os outros, que desce das colinas. Ele é o homem mais forte do mundo, parece um dos imortais do céu. Vagueia pelas colinas com os animais selvagens e come grama; vagueia por tuas terras e desce até os poços d'água. Tenho medo e não ouso dele me aproximar. Ele tapa os buracos que cavo e destrói as armadilhas que preparo para a caça; ele ajuda as feras a escapar e agora elas escorregam por entre meus dedos."
Seu pai abriu a boca e disse ao caçador: "Filho, em Uruk vive Gilgamesh; ninguém jamais o venceu, ele é tão forte quanto uma estrela do céu. Vai a Uruk, encontra Gilgamesh e exalta-lhe a força deste selvagem. Pede-lhe que te arranje uma rameira, uma dissoluta do templo do amor; retorna com ela e deixa que seu poder subjugue este homem. Da próxima vez que ele descer para tomar água no poço, ela estará lá, nua; e quando a vir, acenando para ele, vai abraçá-la, e os animais da selva passarão a repudiá-lo."
O caçador partiu para Uruk e se dirigiu a Gilgamesh, dizendo: "Um homem diferente de todos os outros anda vagueando por nossos pastos; ele tem a força de uma estrela do céu e tenho medo de aproximar-me dele. Ele ajuda as presas a escapar e tapa e destrói as minhas armadilhas." Gilgamesh disse: "Caçador, volta, leva contigo uma rameira, uma filha do prazer. No poço ela se desnudará; ao vê-la acenando, ele a tomará em seus braços e os animais da selva certamente passarão a repudiá-lo."
O caçador então retornou, levando consigo a rameira. Após três dias de viagem, eles chegaram ao poço e lá se sentaram; a rameira e o caçador se sentaram frente a frente e se puseram a esperar pela chegada dos animais. Por dois dias o caçador e a rameira ficaram esperando, mas no terceiro dia eles chegaram; chegaram para beber água e Enkidu estava entre eles. As pequenas criaturas selvagens regozijaram-se com a água, e entre elas Enkidu, que comia grama junto com as gazelas e nascera nas colinas; e ela o viu, o selvagem, vindo das distantes colinas. O caçador disse à rameira: "Lá está ele. Agora, mulher, desnuda teus seios, não tenhas vergonha; anda, acolhe o seu amor. Deixa que ele te veja nua, deixa que possua teu corpo. Quando ele chegar perto, tira tua roupa e deita-te com ele; ensina ao selvagem tuas artes de mulher, para que, quando venha murmurar-te palavras de amor, os animais da selva, que compartilharam sua vida nas colinas, passem a repudiá-lo."
Ela não teve pudores em tomá-lo em seus braços, ela se despiu e acolheu de bom grado o corpo ávido de Enkidu. Ele se deitou sobre ela murmurando palavras de amor, e ela lhe ensinou as artes da mulher. Por seis dias e sete noites eles ali ficaram deitados, pois Enkidu se esquecera de seu lar nas colinas; depois de satisfeito, porém, ele voltou para os animais selvagens. Mas agora, ao vê-lo, as gazelas punham-se em disparada; as criaturas agrestes fugiam quando delas se aproximava. Enkidu queria segui-las, mas seu corpo parecia estar preso por uma corda, seus joelhos fraquejavam quando tentava correr, ele perdera sua rapidez e agilidade. E todas as criaturas da selva fugiram; Enkidu perdera sua força, pois agora tinha o conhecimento dentro de si, e os pensamentos do homem ocupavam seu coração. Então ele voltou e sentou-se ao pé da mulher, e escutou com atenção o que ela lhe disse: "És sábio, Enkidu, e agora te tornaste semelhante a um deus. Por que queres ficar correndo à solta nas colinas com as feras do mato? Vem comigo. Vem e te levarei à Uruk das poderosas muralhas, ao abençoado templo de Ishtar e Anu, do amor e do céu; lá vive Gilgamesh, que é forte, e como um touro selvagem domina e governa os homens."
A fala da mulher agradou a Enkidu; ele ansiava por ter um companheiro, alguém que pudesse compreender seu coração. "Vamos, mulher, leva-me a esse templo sagrado, à casa de Anu e de Ishtar, ao lugar onde Gilgamesh domina e governa seu povo. Eu audazmente o desafiarei; gritarei em Uruk: 'Sou o mais forte daqui, vim para mudar a velha ordem, sou aquele que nasceu nas colinas, sou aquele que é de todos o mais forte.'"
Ela disse: "Vamos, e deixa que ele te veja o rosto. Sei muito bem onde se encontra Gilgamesh na grande Uruk. Oh, Enkidu, lá todos se vestem magnificamente, todos os dias são de festa, e que maravilhosa visão fornecem os rapazes e as jovens. Como é suave e doce seu cheiro! Todos os poderosos estão despertos pela cidade. Oh, Enkidu, tu, que amas a vida, farei com que conheças Gilgamesh, um homem de muitos humores; tu o conhecerás em seu radiante apogeu de virilidade. Seu corpo é perfeito em força e maturidade; ele jamais descansa, nem à noite nem de dia. Ele é mais forte que tu, por isso põe de lado essa bravata. Shamash, o glorioso sol, concedeu-lhe favores, assim como Anu dos céus, e Enlil; e Ea, o sábio, deu-lhe discernimento e inteligência. Eu te digo, mesmo antes de teres deixado a vida selvagem, Gilgamesh saberá de tua chegada através de sonhos."
Então Gilgamesh se levantou para contar o sonho que tivera à sua mãe, Ninsun, uma das deusas de grande saber. "Mãe, tive um sonho esta noite. Eu me sentia muito feliz, cercado de jovens heróis, e caminhava pela noite sob as estrelas do firmamento. Um meteoro, feito da mesma substância de Anu, caiu do céu. Tentei levantá-lo do chão, mas era pesado demais. Toda a gente de Uruk veio vê-lo; o povo se empurrava e se acotovelava ao seu redor, e os nobres se apinhavam para beijar-lhe os pés; ele exercia sobre mim uma atração semelhante à que exerce o amor de uma mulher. Eles me ajudaram; levantei seu corpo com o auxílio de correias e trouxe-o à vossa presença, e vós declarastes ser ele meu irmão."
Então Ninsun, que é sábia e bem-amada, disse a Gilgamesh: "Esta estrela do céu que caiu como um meteoro, que tentaste levantar do chão, mas achaste muito pesada, que tentaste remover, mas que dali não arredava pé, e então trouxeste a mim; eu a criei para ti, para estimular-te como que com um aguilhão, e te sentiste atraído como que por uma mulher. Ele é um forte companheiro, alguém que ajuda o amigo nas horas de necessidade. Ele é o mais forte entre todas as criaturas selvagens; é feito da substância de Anu. Ele nasceu nos campos e foi criado nas colinas agrestes. Ficarás feliz ao encontrá-lo; vais amá-lo como a uma mulher, e ele jamais te abandonará. E isto o que significa teu sonho."
Gilgamesh disse: "Mãe, tive um segundo sonho. Um machado jazia no chão de Uruk das poderosas muralhas; seu formato era estranho e as pessoas se amontoavam ao seu redor. Eu o vi e fiquei contente. Eu me abaixei, sentindo-me profundamente atraído por ele; eu o amei como a uma mulher e passei a levá-lo comigo, ao meu lado." Ninsun respondeu: "Aquele machado que viste, que te atraiu tão profundamente como o amor de uma mulher, aquele é o companheiro que te envio, e ele chegará com força e pujança como um deus da hoste celeste. Ele é o bravo companheiro, que salva o amigo que dele precisa." Gilgamesh disse a sua mãe: "Um amigo, um conselheiro chegou até mim vindo de Enlil; serei, pois, seu amigo e lhe darei conselhos." Gilgamesh assim narrou seu sonho; e a rameira o repetiu para Enkidu.
E ela disse então a Enkidu: "Olho para ti e vejo que agora és como um deus. Por que anseias por voltar a correr pelos campos com as feras do mato? Ergue-te do chão, a cama do pastor." Ele escutou com atenção suas palavras. Era um bom conselho que lhe dava. A rameira dividiu sua roupa em duas partes; com uma metade o vestiu, usando a outra para si. Tomando Enkidu pela mão, como a uma criança, ela o conduziu ao aprisco, para as tendas dos pastores, que se amontoaram ao seu redor para vê-lo. Eles depositaram pão à sua frente, mas Enkidu só estava habituado ao leite que sugava dos animais selvagens. Ele se atrapalhou com as mãos e pasmou, sem saber o que fazer com o pão e o vinho forte. A mulher então disse: "Enkidu, come o pão, é o suporte da vida; bebe o vinho, é o costume da terra." Enkidu então comeu até ficar satisfeito e bebeu do vinho forte, sete cálices. Ele ficou alegre, seu coração exultou e seu rosto se cobriu de brilho. Enkidu escovou os pêlos emaranhados de seu corpo e untou-se com óleo. Ele se transformara num homem; mas, ao vestir as roupas humanas, ficou parecendo um noivo. Ele se armou para caçar o leão, para que os pastores pudessem repousar à noite. Ele caçou lobos e leões, e os pastores puderam dormir em paz, pois Enkidu, aquele homem forte e sem rivais, era seu sentinela.
Ele se sentia feliz vivendo com os pastores, até que um dia, levantando o olhar, viu que um homem se aproximava. Ele disse à rameira: "Mulher, traze aqui aquele homem. Por que veio aqui? Quero saber seu nome." Ela foi e chamou o homem, dizendo: "Senhor, onde vais nesta fatigante jornada?" O homem respondeu, falando a Enkidu: "Gilgamesh foi para o templo do casamento e não deixa que o povo lá entre. Ele faz coisas estranhas em Uruk, a cidade das grandes ruas. Ao rufar dos tambores, os homens e as mulheres começam a trabalhar. Gilgamesh, o rei, está prestes a celebrar as núpcias com a Rainha do Amor, e ele ainda insiste em estar primeiro com a noiva; primeiro o rei, depois o marido, pois assim ordenaram os deuses desde a época de seu nascimento, quando lhe foi cortado o cordão umbilical. Mas agora os tambores rufam para a escolha da noiva, e a cidade geme de dor." Ao ouvir estas palavras, Enkidu empalideceu. "Irei à cidade cujo povo Gilgamesh domina e governa; vou desafiá-lo au-dazmente para um combate e gritarei por Uruk: 'Vim para mudar a velha ordem, pois sou o mais forte daqui.'"
Enkidu ia agora na frente, a largas passadas, e a mulher o seguia. Ele entrou em Uruk, aquele grande mercado, e todo o povo se amontoou ao seu redor. Naquela rua de Uruk das poderosas muralhas, as pessoas se comprimiam e se acotovelavam e, falando dele, diziam: "Ele é a imagem de Gilgamesh." "Ele é mais baixo." "Ele é mais robusto." "Esta é a criatura que se criou tomando leite das feras selvagens. Sua força é superior à de todos os outros." Os homens se regozijavam de felicidade: "Agora Gilgamesh encontrou um rival à sua altura. Esta grande criatura, este herói de divina beleza pode enfrentar até mesmo Gilgamesh."
Em Uruk o leito nupcial fora preparado, um leito digno da deusa do amor. A noiva ficou esperando seu prometido; à noite, porém, Gilgamesh levantou-se e se dirigiu à casa. Enkidu foi então para a rua e bloqueou sua passagem. O poderoso Gilgamesh se aproximou e encontrou Enkidu no portão. Este esticou sua perna para impedir-lhe a entrada. Os dois então se engalfinharam como touros. Destruíram a porta da casa, e suas paredes tremeram; bufavam como dois touros trancados juntos. Os batentes da porta ficaram em pedaços e as paredes da casa tremeram. Gilgamesh curvou o joelho, fincou os pés no chão e, virando-se, derrubou Enkidu. Sua fúria então se desvaneceu imediatamente. Após a queda, Enkidu disse a Gilgamesh: "Não há ninguém como tu no mundo. Ninsun, que tem a força de um boi selvagem no estábulo, foi quem te deu à luz, e agora estás acima de todos os homens. Enlil te deu a coroa, pois tua força ultrapassa a força dos homens." Enkidu e Gilgamesh então se abraçaram, e assim foi selada sua amizade.


2. A jornada na floresta

ENLIL da montanha, o pai dos deuses, havia decretado o destino de Gilgamesh. Por isso Gilgamesh teve um sonho, e Enkidu disse: "O significado do teu sonho é o seguinte: o pai dos deuses te deu um trono, reinar é o teu destino; a vida eterna não é teu destino. Por isso, não fiques triste, não te atormentes nem te deixes oprimir por causa disso. Ele te deu o poder de atar e desatar, de ser as trevas e a luz da humanidade. Ele te deu supremacia sem paralelo sobre o povo, te garante a vitória nas batalhas de onde não escapam fugitivos; o sucesso é teu nas incursões militares e nos implacáveis assaltos por ti empreendidos. Mas não abuses deste poder; sê justo com teus servos no palácio; faze justiça perante Shamash."
Os olhos de Enkidu encheram-se de lágrimas e seu coração foi tomado de angústia. Ele suspirava cheio de tristeza. Gilgamesh fitou-o nos olhos e perguntou: "Amigo, por que suspiras tão tristemente?" Enkidu abriu a boca e respondeu: "Sinto-me fraco, meus braços perderam sua força, o grito de dor está preso em minha garganta e o ócio me oprime." Foi então que o grande Gilgamesh começou a pensar na Terra dos Vivos; sobre a Terra dos Cedros refletiu o senhor de Uruk. Ele disse a seu servo Enkidu: "Sobre as lápides ainda não deixei impresso o meu nome, como decretou o destino; irei então à terra onde são abatidos os cedros. No lugar onde estão inscritos os nomes de homens ilustres, deixarei gravado o meu nome; e onde nome de homem algum foi jamais inscrito, mandarei erigir um monumento aos deuses. Por causa do mal que existe sobre a terra, nós iremos à floresta destruir esse mal; pois é lá que mora o feroz gigante Humbaba, cujo nome é 'Enormidade'." Mas Enkidu suspirou tristemente e disse: "Descobri essa floresta quando corria no mato com as feras selvagens; ela se estende por dez mil léguas em todos os sentidos. Enlil designou Humbaba para tomar conta dela e o armou com sete horrores; Humbaba é uma criatura hedionda para todos os mortais. Seu rugido é como uma terrível borrasca, seu hálito é como o fogo, suas mandíbulas, a própria morte. Ele guarda tão bem os cedros que consegue ouvir um novilho se mexer na selva a sessenta léguas de distância. Que espécie de homem iria de sua própria vontade penetrar nesta terra e explorar suas profundezas? Eu te digo, a fraqueza toma conta de todo aquele que dela se aproxima: ninguém luta com Humbaba em pé de igualdade; ele é um grande guerreiro, um aríete. O sentinela da floresta jamais dorme, Gilgamesh."
Gilgamesh replicou: "E que homem pode chegar ao céu? Somente os deuses vivem eternamente na companhia do glorioso Shamash; nós, homens, temos nossos dias contados. Nossos trabalhos e empreendimentos são como um sopro de vento. Como, então, já estás com medo? Embora seja teu senhor, irei na frente e poderás gritar com segurança: 'Avante, não há nada a temer!' Se eu cair, deixarei então um nome que ficará para a posteridade; os homens dirão a meu respeito: 'Gilgamesh caiu lutando com o feroz Humbaba.' Muito tempo depois do nascimento de meu herdeiro, eles estarão falando disso e se lembrando do meu feito." Enkidu tornou a falar com Gilgamesh: "Oh, meu senhor, se algum dia decidires entrar naquela terra, procura primeiro o herói Shamash; fala com o Deus-Sol, pois é dele aquela terra. A terra onde o cedro é abatido pertence a Shamash."
Gilgamesh tomou em seus braços um cordeiro branco, sem qualquer mácula, e um outro castanho; ele os segurou contra o peito e os levou à presença do sol. Carregando na mão seu cetro de prata, Gilgamesh disse ao glorioso Shamash: "Vou para aquela terra, oh, Shamash, para lá eu vou; minhas mãos suplicam, protejei minha alma e trazei-me de volta ao cais de Uruk. Eu imploro vossa proteção; permiti que os augúrios sejam propícios." Shamash, o glorioso, respondeu: "Gilgamesh, és forte, mas que é para ti a Terra dos Vivos?"
"Oh, Shamash, ouvi-me; ouvi-me, Shamash; ouvi o que tenho a dizer. Os homens aqui da cidade morrem com o coração oprimido, eles morrem com o desespero em seus corações. Tenho olhado por cima do muro e visto seus corpos flutuando no rio, e este será também o meu fim. Estou certo disso, pois por mais alto que seja um homem, ele jamais atingirá os céus, e o maior entre todos jamais conseguirá abarcar a terra. Por isso quero entrar naquela terra: por não ter ainda inscrito meu nome sobre as lápides, como decretou meu destino, irei à terra onde são abatidos os cedros. No lugar onde estão inscritos os nomes de varões ilustres, deixarei gravado o meu nome; e onde nome de homem algum foi jamais inscrito, mandarei erigir um monumento aos deuses." Lágrimas escorreram por seu rosto, e ele disse: "Ai de mim! É longa a jornada até a Terra de Humbaba. Se esta iniciativa está fadada ao fracasso, por que encheste-me, oh, Shamash, de um sôfrego desejo de empreendê-la? Como poderei ter sucesso neste empreendimento sem vossa ajuda? Se eu morrer naquela terra, morrerei sem rancor; mas, se retornar, gloriosos serão os presentes e louvores que dedicarei a Shamash."
Shamash aceitou então o sacrifício de suas lágrimas. Tal como o homem piedoso, compadeceu-se de Gilgamesh. Escolheu aliados fortes para ajudá-lo, todos filhos de uma mesma mãe, e os posicionou nas cavernas da montanha. Recrutou os ventos poderosos: o vento norte, o furacão, o temporal e o vento gélido, a tempestade e o vento cáustico. Como víboras, como dragões, como um fogo devastador, como uma serpente que gela o coração, como um implacável dilúvio, como o grande raio; assim eram eles, e Gilgamesh exultou.
Ele se dirigiu à forja e disse: "Darei ordens aos armeiros; eles forjarão nossas armas enquanto nós os observamos." Deu então instruções aos armeiros e os artífices sentaram-se em conferência. Eles foram ao arvoredo que ficava na campina e cortaram a madeira do salgueiro e do buxo; e forjaram-lhes machados de cento e oitenta libras, e espadas majestosas com lâminas de cento e vinte libras, com punhos e botões de trinta. Forjaram para Gilgamesh o machado "Força dos Heróis" e o arco de Anshan. Gilgamesh e Enkidu estavam armados, e o peso das armas que carregavam era de seiscentas libras.
O povo e os conselheiros se reuniram nas ruas e no mercado de Uruk. Atravessaram o portão dos sete ferrolhos e Gilgamesh lhes falou no mercado: "Eu, Gilgamesh, irei encontrar essa criatura de quem tanto se fala, cuja fama se espalhou pelo mundo. Vou derrotá-lo na floresta dos cedros e mostrar a força dos filhos de Uruk; o mundo inteiro saberá disso. Eu me comprometo a levar a cabo este empreendimento: subir a montanha, abater o cedro e deixar para trás um nome ilustre e duradouro." Os conselheiros de Uruk e o povo responderam: "Gilgamesh, sois jovem; vossa coragem faz com que ambicioneis demais; certamente não sabeis o que para vós significa esta empresa. Soubemos que Humbaba não é igual aos mortais; tais são suas armas que ninguém pode vencê-lo. A floresta se estende por dez mil léguas em todos os sentidos; quem iria de sua própria vontade explorar suas profundezas? Quanto a Humbaba, seu rugido é como uma terrível borrasca, seu hálito é como o fogo, suas mandíbulas a própria morte. Por que ansiais, Gilgamesh, por tal empreendimento? Ninguém luta com Humba-ba em pé de igualdade; ele é um aríete."
Ao ouvir estas palavras dos conselheiros, Gilgamesh olhou para seu amigo e pôs-se a rir. "Como responder a isso? Devo dizer-lhes que tenho medo de Humbaba e por isso ficarei sentado em casa pelo resto de meus dias?" Gilgamesh então tornou a abrir a boca e disse para Enkidu: "Amigo, vamos para o Grande Palácio, para Egalmah, e postemos-nos diante de Ninsun, a rainha. Ninsun tem profunda sabedoria; ela nos aconselhará quanto ao caminho que devemos tomar." Dando-se as mãos, eles seguiram a Egalmah e se dirigiram à grande rainha Ninsun. Gilgamesh se aproximou do palácio, entrou e falou a Ninsun: "Ninsun, por favor, escutai-me; tenho de empreender uma longa jornada à Terra de Humbaba; tenho de viajar por uma estrada desconhecida e me bater numa estranha batalha. Do dia em que eu partir até o dia da minha volta, até ter chegado à floresta de cedro e destruído o mal que Shamash abomina, rezai a Shamash por mim."
Ninsun foi para seu quarto, pôs um vestido que ficava bem em seu corpo, enfeitou-se com jóias para embelezar os seios e colocou uma tiara na cabeça; sua saia varria o chão. Ela dirigiu-se então ao altar do Sol, postando-se em cima do telhado do palácio; ela acendeu incenso e elevou seus braços a Shamash, enquanto a fumaça subia aos céus: "Oh, Shamash, por que dotastes Gilgamesh, meu filho, de um coração tão inquieto; por quê? Vós o incitastes, e ele agora está prestes a partir numa longa jornada para a Terra de Humbaba; ele vai viajar por uma estrada desconhecida e se bater numa estranha batalha. Do dia em que ele partir até o dia de sua volta, até que tenha chegado à floresta de cedro, morto Humbaba e destruído o mal que vós, Shamash, abominais, não vos esqueçais dele; deixai que vossa amada esposa, Aya, a aurora, vos lembre sempre disso, e ao final do dia entregai sua guarda à sentinela da noite, para que mal algum lhe advenha." Ninsun, a mãe de Gilgamesh, extinguiu então o incenso e chamou Enkidu com a seguinte exortação: "Poderoso Enkidu, não és filho do meu corpo, mas recebo-te como filho adotivo; és meu outro filho, como os bebês abandonados no templo. Serve a Gilgamesh como estas crianças servem ao templo e à sacerdotisa que os criou. Na presença de minhas servas, de meus sacerdotes e hierofantes, eu o declaro." Ela colocou então em torno de seu pescoço o amuleto do juramento e disse-lhe: "Eu te confio meu filho; traze-o de volta para mim em segurança." Trouxeram-lhes então as armas. Depositaram em suas mãos as grandes espadas com suas bainhas de ouro, o arco e a aljava. Gilgamesh tomou o machado em suas mãos, pôs o arco de Anshan e a aljava sobre o ombro e afivelou a espada a seu cinto; estavam armados e prontos para partir. O povo havia chegado e se apinhava ao seu redor perguntando: "Quando retornareis à cidade?" Os conselheiros abençoaram Gilgamesh e o advertiram: "Não confieis demais em vossa própria força, tende cuidado e poupai vossos golpes no começo da luta. O que for à frente deve proteger seu companheiro; o bom guia que conhece o caminho protege seu amigo. Deixai que Enkidu vá na frente; ele conhece o caminho que leva à floresta, já viu Humbaba e é experiente na batalha. Deixai que avance primeiro pelos desfiladeiros, que fique alerta e que cuide de si mesmo. Deixai que Enkidu proteja seu amigo e que tome conta de seu companheiro, conduzindo-o em segurança através das armadilhas do percurso. Nós, conselheiros de Uruk, te confiamos nosso rei, oh, Enkidu; traze-o de volta em segurança para nós." E novamente tornaram a Gilgamesh, dizendo: "Que Shamash vos conceda o desejo de vosso coração, que ele permita que vejais com vossos olhos o sucesso do empreendimento proposto por vossos lábios; que ele vos abra uma trilha na estrada bloqueada; que ele crie um caminho para vossos pés. Que ele abra as montanhas para a vossa passagem, que a noite vos traga as bênçãos da noite, e que Lugulbanda, o deus que vos protege, esteja a vosso lado na luta pela vitória. Que saiais vitorioso da batalha, como se houvésseis lutado com uma criança. Lavai vossos pés no rio de Humbaba, ao qual vos dirigis; cavai um poço à noite e tende sempre água pura e límpida em vosso odre. Oferecei água fria a Shamash e não vos esqueçais de Lugulbanda."
Enkidu então abriu a boca e disse: "Avante, não há nada a temer. Segue-me, pois conheço o lugar onde vive Humbaba e as trilhas por onde ele passa. Deixa que os conselheiros retornem. Não há o que temer." Ao ouvirem isso, os conselheiros se despediram de Gilgamesh. "Ide, Gilgamesh, que vosso deus protetor vos ajude e vos traga de volta com segurança ao cais de Uruk."
Depois de vinte léguas de viagem, eles quebraram seu jejum; depois de outras trinta, pararam para passar a noite. Caminharam cinqüenta léguas num dia; em três dias, haviam percorrido o equivalente a uma jornada de um mês e duas semanas. Eles atravessaram sete montanhas antes de chegar ao portão da floresta. Enkidu então gritou para Gilgamesh: "Não te embrenhes na floresta; ao abrir o portão, minha mão perdeu sua força." Gilgamesh respondeu: “Caro amigo, não fales como um covarde”. Sobrepujamos tantos perigos e viajamos tanto para acabar voltando? Tu, que carregas a experiência de tantas batalhas e guerras, fica perto de mim e não terás medo da morte; fica do meu lado e tua fraqueza passará, os tremores abandonarão tua mão. Preferirias, amigo, ficar para trás? Não, desceremos juntos ao coração da floresta. Deixa as batalhas que estão por vir despertarem tua coragem; esquece a morte e segue-me, um homem resoluto mas prudente. Quando dois homens estão juntos, cada um se protege e escuda seu companheiro, e, se eles caem, deixam para trás um nome ilustre e duradouro.
Juntos eles se dirigiram à floresta e chegaram à montanha verde. Ali pararam, estupefatos, fitando imóveis a floresta. Viram a altura do cedro, examinaram o caminho que penetrava na floresta e a trilha por onde Humbaba costumava passar. O caminho era largo e fácil de percorrer. Eles contemplaram a montanha dos cedros, a morada dos deuses e o trono de Ishtar. O enorme cedro se elevava em frente à montanha; sua sombra era linda e cheia de conforto. A montanha e a clareira eram cobertas pelo verde do matagal.
Ali Gilgamesh cavou um poço antes do pôr-do-sol. Ele subiu a montanha, deitou farinha fina ao chão e disse: "Oh, montanha, morada dos deuses, trazei-me um sonho auspicioso." Os dois então deram-se as mãos e se deitaram para dormir, e o sono que flui da noite os envolveu docemente. Gilgamesh sonhou, e à meia-noite o sono o deixou. Gilgamesh contou seu sonho ao amigo. "Enkidu, o que foi que me acordou se não foste tu? Amigo, tive um sonho. Levanta e olha o despenhadeiro da montanha. O sono enviado pelos deuses foi interrompido. Ah, meu amigo, que sonho tive eu! Terror e confusão; eu havia agarrado um touro selvagem no meio da floresta. Ele urrava e batia com a pata no chão, levantando uma poeira que escureceu todo o céu. Meu braço foi imobilizado e minha língua mordida. Caí de joelhos. Alguém então me refrescou com água de seu odre."
Enkidu disse: "Caro amigo, o deus que procuramos nesta viagem não é nenhum touro, embora tenha uma forma misteriosa. O touro selvagem que viste é Shamash, o Protetor; quando estivermos em perigo, ele nos tomará pela mão. Aquele que te deu água tirada de seu odre é Lugulbanda, teu deus protetor, aquele que zela por teu bom nome. Unidos a ele, nós dois juntos realizaremos um feito cuja fama jamais será esquecida."
Gilgamesh disse: "Tive um outro sonho. Nós nos encontrávamos num desfiladeiro profundo da montanha, e perto dela éramos como minúsculas moscas de pântano. De repente a . montanha desmoronou; ela me atingiu e me derrubou. Veio então uma luz de brilho intolerável, e nela, alguém cuja beleza e graça eram superiores à beleza deste mundo. Ele me puxou de baixo da montanha e deu-me água para beber. Meu coração se sentiu confortado e ele tornou a colocar-me de pé sobre o chão."
Enkidu, o filho das campinas, então disse: "Desçamos a montanha e vamos conversar sobre isso." E disse a Gilgamesh, o jovem deus: "Teu sonho é bom, teu sonho é excelente; a montanha que viste é Humbaba. Agora sei com certeza que vamos pegá-lo, liquidá-lo e atirar seu corpo lá de cima, como a montanha que caiu sobre a planície."
No dia seguinte, depois de percorrer vinte léguas, eles quebraram seu jejum e, depois de mais trinta léguas, pararam para dormir. Cavaram um poço antes do pôr-do-sol, e Gilgamesh subiu a montanha. Ele deitou farinha fina ao chão e disse: "Oh, montanha, morada dos deuses, mandai um sonho para Enkidu; fazei com que seja um sonho auspicioso." A montanha moldou um sonho para Enkidu e ele lhe foi enviado; era um sonho ominoso. Uma chuva fria passava por cima dele e fazia com que fosse obrigado a se agachar, como a cevada da montanha que se curva sob um temporal. Mas Gilgamesh ficou sentado com o queixo sobre os joelhos até que o sono, que flui para toda a humanidade, se apoderou dele. Então, à meia-noite, o sono deixou-o; ele se levantou e disse para o amigo: "Tu me chamaste? Por que acordei? Tu me tocaste? Por que me sinto aterrorizado? Será que algum deus não passou por nós, pois meus membros estão paralisados pelo medo? Amigo, tive um terceiro sonho, e este sonho foi absolutamente terrível. Os céus troavam e a terra rugia de volta; a luz do dia apagou-se e a escuridão se instalou; os raios caíam, o fogo ardia com um brilho intenso, as nuvens baixaram do céu e derramaram sobre a terra uma chuva mortal. Então o brilho se extinguiu, o fogo se apagou, e tudo ao nosso redor havia se transformado em cinzas. Desçamos a montanha e vamos conversar sobre isto, e pensar sobre o que devemos fazer."
Depois de descerem a montanha, Gilgamesh tomou o machado em sua mão e abateu o cedro. Quando, a distância, Humbaba ouviu o barulho, ficou furioso e gritou: "Quem violou minha floresta e abateu o meu cedro?" Mas o glorioso Shamash gritou para eles do céu, "Avante, não temais!" Mas uma fraqueza se apoderara de Gilgamesh; ele fora repentinamente tomado por um sono profundo. Ele se estendeu no chão sem dizer uma só palavra, como num sonho. Enkidu tocou-o, mas ele não se levantou; Enkidu lhe falou, mas ele não respondeu. "Oh, Gilgamesh, Senhor da planície de Kullab, o mundo vai escurecendo, as sombras se espalham sobre sua superfície; eis os últimos e trêmulos raios do crepúsculo. Shamash partiu, sua cabeça incandescente repousa no colo de sua mãe Ningal. Oh, Gilgamesh, por quanto tempo ficarás assim, dormindo? Não permitas jamais que tua mãe, aquela que te deu à luz, seja forçada a velar-te na praça da cidade."
Gilgamesh por fim escutou-o; ele vestiu seu peitoral, "A Voz dos Heróis", que pesava trinta siclos; ele o colocou em seu corpo como se fosse o mais leve dos trajes. Gilgamesh estava totalmente coberto. Sua postura era semelhante à do touro quando calca o chão; seus dentes se cerraram. "Pela vida de minha mãe Ninsun, que me deu à luz, e pela vida de meu pai, o divino Lugulbanda, que eu viva para encher minha mãe de pasmo, como fazia quando ela me embalava em seu colo." Ele tornou a repetir para Enkidu: "Pela vida de Ninsun minha mãe, que me deu à luz, e pela vida de meu pai, o divino Lugulbanda, até que tenhamos lutado com este homem, se homem ele é, ou este deus, se deus ele é, a via que tomei para chegar à Terra dos Vivos não me levará de volta a Uruk."
Então Enkidu, o fiel companheiro, implorou em resposta: "Oh, meu senhor, tu não conheces este monstro e por isso não tens medo. Eu o conheço e estou aterrorizado. Seus dentes são como as presas do dragão, seu semblante é como o do leão, a fúria de seu ataque se assemelha à da torrente do dilúvio; com seu olhar ele esmaga as árvores da floresta e os juncos dos pântanos. Oh, meu senhor, podes prosseguir em tua incursão por este território se quiseres, mas eu retornarei à cidade. Contarei teus feitos gloriosos a tua mãe até que ela grite de júbilo: falarei então da morte que se seguiu até que ela chore de amargura." Mas Gilgamesh disse: "Ainda não estou preparado para a imolação e para o sacrifício, a barca dos mortos não descerá o rio comigo, nem tampouco será necessário que se prepare para mim a mortalha de três pregas. Meu povo também será poupado da tristeza; a pira não será acesa em minha casa; minha morada não será consumida pelo fogo. Dá-me tua ajuda hoje e te ajudarei amanhã: o que poderá então dar errado com nós dois juntos? Todas as criaturas nascidas da carne terão um dia que tomar um lugar na barca do Oeste, e, quando ela afundar, quando a barca de Magilum afundar, elas perecerão; mas nós continuaremos em frente e olharemos este monstro de frente. Se teu coração está tomado de medo, joga fora esse medo; se há terror nele, joga fora esse terror. Toma o machado em tua mão e lança-te ao ataque. Aquele que abandona a luta não fica em paz."
Humbaba irrompeu de sua sólida casa de cedro. Enkidu então gritou: "Oh, Gilgamesh, lembra-te agora de tuas bravatas em Uruk. Avante, ataca, filho de Uruk, não há o que temer." Ao ouvir estas palavras, Gilgamesh recobrou sua coragem; ele respondeu: "Rápido, cerca o sentinela; se ele passar por ali, não deixes que fuja para a floresta, onde acabará desaparecendo. Ele vestiu apenas o primeiro de seus sete esplendores e ainda não colocou os outros seis. Vamos apanhá-lo antes que se arme." Gilgamesh resfolegou como um touro enfurecido. O sentinela da floresta virou-se ameaçadora-mente, e Gilgamesh gritou. Humbaba balançava e sacudia a cabeça, ameaçando Gilgamesh. O olho do gigante fixara-se nele, o olho da morte. Gilgamesh então invocou Shamash com os olhos cheios de lágrimas: "Oh, glorioso Shamash, tomei o caminho que me ordenastes, mas se não me mandardes socorro como poderei escapar?" O glorioso Shamash escutou sua prece e convocou o grande vento, o vento norte, o furacão, o temporal e o vento gélido, a tempestade e o vento cáustico. Eles chegaram como dragões, como o fogo devastador, como a serpente que gela o coração, como o implacável dilúvio, como os grandes raios. Os oito ventos se lançaram contra Humbaba, atingindo seus olhos; ele foi imobilizado, não conseguindo mover-se para a frente ou para trás. Gilgamesh gritou: "Pela vida de Ninsun, minha mãe, e do divino Lugulbanda, meu pai, nesta terra, na Terra dos Vivos, descobri tua morada. Vim a esta terra com meus frágeis braços e minhas pequenas armas para enfrentar-te, e agora entrarei em tua casa."
Ele então abateu o primeiro cedro; eles cortaram seus galhos e os depositaram ao pé da montanha. Ao primeiro golpe do machado Humbaba explodiu de ira, mas eles foram em frente. Abateram sete cedros, cortaram e amarraram seus galhos e os depositaram ao pé da montanha; e por sete vezes Humbaba lançou sobre eles o brilho de sua glória. Eles chegaram à caverna do gigante quando se extinguia o sétimo clarão. Humbaba esmurrou sua coxa em sinal de desdém. O gigante foi se aproximando como um touro nobre e selvagem que foi amarrado na montanha, um guerreiro com os cotovelos presos e atados por uma corda. As lágrimas corriam de seus olhos e a palidez lhe cobria o rosto. "Gilgamesh, deixa-me falar. Jamais tive uma mãe, não, nem um pai para me criar. Nasci da montanha, ela me criou, e Enlil fez de mim o sentinela da floresta. Deixa-me ir, Gilgamesh, e serei teu servo; tu serás meu senhor. Todas as árvores da montanha, que foram cuidadas por mim, serão tuas. Eu as abaterei e te construirei um palácio." Ele tomou Gilgamesh pela mão e o conduziu à sua casa, e isso fez com que o coração do herói se enchesse de piedade. Ele invocou a vida celestial, a vida terrena, o próprio mundo inferior: "Oh, Enkidu, não deveria o passarinho apanhado na armadilha retornar ao seu ninho, ou o prisioneiro para os braços de sua mãe?" Enkidu respondeu: “O mais forte dos homens cairá ante o destino se não tiver discernimento”. Namtar, o fado maligno, que não faz distinção entre os homens, devorá-lo-á. Se o pássaro preso na armadilha retornar ao seu ninho, se o prisioneiro voltar para os braços de sua mãe, então tu, meu amigo, jamais retornarás à cidade onde te espera a mãe que te gerou. Ele te bloqueará o caminho da montanha e tornará impossível tua passagem.
Humbaba disse: "Enkidu, isso que disseste é uma coisa má; tu, um mercenário, que dependes do trabalho para obter teu pão! Por inveja e por medo de um rival disseste essas maldades." Enkidu disse: "Não ouças o que ele diz, Gilgamesh: Humbaba tem de morrer. Mata Humbaba primeiro e seus servos depois." Mas Gilgamesh disse: "Se tocarmos nele, o brilho e o esplendor da luz serão perturbados; ela perderá seu encanto e sua majestade; seus raios se extinguirão." Enkidu disse a Gilgamesh: "De modo algum, meu amigo. Primeiro apanhas o pássaro, e para onde então correrão os passarinhos? Podemos depois procurar o encanto e a majestade, enquanto os passarinhos correm atarantados pela grama."
Gilgamesh ouviu seu companheiro. Ele tomou o machado em sua mão, desembainhou a espada e acertou Humbaba com uma estocada no pescoço. Seu companheiro Enkidu golpeou-o uma segunda vez. Na terceira investida Humbaba tombou. Seguiu-se então uma grande confusão, pois este a quem eles haviam morto era o sentinela da floresta. Por duas léguas os cedros estremeceram quando Enkidu abateu o vigia da floresta, aquele cuja voz fazia o montes Hermon e Líbano tremerem. As montanhas e todas as colinas se achavam agora agitadas e comovidas, pois o guarda da floresta fora morto. Eles atacaram os cedros; os sete esplendores de Humbaba se extinguiram. Eles então prosseguiram floresta adentro carregando a espada de oito talentos. Eles acharam as moradas sagradas dos Anunnaki e, enquanto Gilgamesh abatia a primeira árvore da floresta, Enkidu ia limpando suas raízes até as margens do Eufrates. Eles expuseram aos deuses, a Enlil, o corpo de Humbaba; eles beijaram o chão, deixaram cair a mortalha e apresentaram ao deus a cabeça do gigante. Ao ver a cabeça de Humbaba, Enlil gritou: "Por que fizestes isso? De agora em diante que o fogo castigue vossos rostos, que ele coma o pão que corneis, que beba a água que bebeis." Enlil então tomou de volta o brilho e os sete esplendores que haviam pertencido a Humbaba: ele deu o primeiro deles ao rio, e os outros ao leão, à pedra de execração, à montanha e à temida filha da Rainha do Inferno.
Oh, Gilgamesh, rei e conquistador do brilho terrível, touro selvagem que pilha a montanha, que atravessa o mar, louvado seja; e dos corajosos a maior glória é a de Enki!

3. Ishtar e Gilgamesh, e a morte de Enkidu

Gilgamesh lavou seus longos cabelos e limpou suas armas; jogou os cabelos para trás dos ombros, tirou as roupas manchadas que vestia e trocou-as por novas. Ele colocou seus mantos reais e os ajustou ao corpo. Ao vestir a coroa, a gloriosa Ishtar elevou seus olhos e divisou a beleza de Gilgamesh. Ela disse: "Vem comigo, Gilgamesh, e sê meu consorte; infunde-me a semente de teu corpo; deixa-me ser tua mulher e serás meu marido. Arrearei para ti uma carruagem com ouro e lápis-lazúli; as rodas serão de ouro, as trompas de cobre; em vez de mulas, terás para puxá-la os poderosos demônios da tempestade. Ao entrares em nossa casa, envolvida na fragrância do cedro, terás a soleira e o trono a beijar-te os pés. Reis, tiranos e príncipes se curvarão à tua presença; eles te trarão tributos das montanhas e das planícies. Tuas ovelhas darão à luz gêmeos e tuas cabras trigêmeos; teus burros de carga serão mais rápidos do que as mulas; nada se igualará a teu gado, e os cavalos de tua carruagem serão conhecidos em terras distantes por sua velocidade."
Gilgamesh abriu a boca e respondeu à gloriosa Ishtar: “Se vos tomar como esposa, que presentes poderei oferecer em troca”? Que vestes e perfumes poderia te dar? De bom grado dar-vos-ia pão e todo tipo de comida à altura de um deus. Dar-vos-ia de beber um vinho digno de uma rainha. Eu abarrotaria vosso celeiro de cevada; mas fazer de vós minha esposa, isso não. O que seria de mim? Fostes para vossos amantes como um braseiro que arde sem chama no frio, como uma porta que não protege do vento cortante ou da tempestade, uma fortaleza que esmaga sua guarnição, uma jarra que enegrece o ombro de quem a carrega, um odre que escoria e esfola a pele de seu portador, uma rocha que cai do parapeito, um aríete vindo do inimigo, uma sandália que faz tropeçar aquele que a veste. Qual de vossos amantes chegastes alguma vez a amar para sempre? De qual de vossos pastores não vos cansastes? Escutai-me enquanto conto a história de vossos amantes. Havia Tammuz, o amor de vossa juventude; decretastes por ele o choro e a lamentação, ano após ano. Amastes o multicolorido gaio, mas ainda sim desferistes um golpe contra sua asa, quebrando-a; agora, pousado em alguma árvore do bosque, ele chora 'cápi, cápi, minha asa, minha asa'. Amastes o leão de tremenda força; preparastes para ele sete armadilhas, e mais sete. Amastes o garanhão que era magnífico na batalha, e para ele decretastes o chicote, a espora e a correia; ordenastes que galopasse sete léguas todos os dias e que lhe dessem água suja para beber; e para sua mãe, Silili, impusestes as lamentações. Amastes o pastor do rebanho; dia após dia ele vos preparava um bolo de aveia; e sacrificava cordeiros em vossa homenagem. Vós o golpeastes e o transformastes num lobo; agora seus próprios filhos o afujentam, seus próprios cães de caça o acossam, lacerando-lhe os flancos. E não amastes também Ishullanu, o jardineiro do bosque de palmeiras de vosso pai? Ele vos trazia incontáveis cestas repletas de tâmaras; todos os dias ele cobria vossa mesa. Então olhastes para ele e dissestes: 'Caro Ishullanu, vem comigo, vamos desfrutar de tua virilidade, aproxima-te e toma-me em teus braços, sou tua.' Ishullanu respondeu: 'O que estais me pedindo? Minha mãe cozinhou e eu comi; por que deveria recorrer a alguém como vós para obter comida contaminada e pútrida? Pois desde quando um biombo de treliça é proteção suficiente contra a geada?' Ao ouvir sua resposta lançastes contra ele um feitiço. Ele se transformou numa toupeira cega que habita as profundezas da terra, alguém cujos desejos estão sempre além de seu alcance. E, se nos uníssemos, será que eu não receberia o mesmo tratamento dispensado a todos esses que um dia amastes?
Ao ouvir esta resposta, Ishtar foi tomada de uma implacável cólera. Ela subiu aos céus e chorou convulsivamente diante de seu pai, Anu, e sua mãe, Anion. E disse: "Pai, Gilgamesh cobriu-me de insultos; ele expôs toda a minha abominável conduta; denunciou minhas infâmias e torpezas." Anu abriu a boca e disse: "És um pai de deuses? Não discutiste com Gilgamesh, o rei, e por isso ele denunciou tua abominável conduta, tuas infâmias e torpezas?"
Ishtar abriu a boca e tornou a falar: "Pai, dai-me o Touro do Céu para destruir Gilgamesh. Enchei, eu vos peço, Gilgamesh de arrogância para sua própria destruição; mas, se vos recusardes a me dar o Touro do Céu, destruirei os portões do inferno e despedaçarei seus ferrolhos; haverá confusão entre os seres que estão nas camadas superiores e os que estão nas profundezas da terra. Trarei os mortos para cima, para que se alimentem como os vivos, e a hoste dos mortos será mais numerosa que a dos vivos." Anu disse à poderosa Ishtar: "Se eu fizer o que tu me pedes, haverá sete anos de seca por toda Uruk; o trigo só terá palha e nada de semente. Guardaste uma quantidade suficiente de grãos para as pessoas e capim para o gado?" Ishtar replicou: "Guardei grãos para as pessoas e capim para o gado; há uma quantidade suficiente de grãos e capim para os sete anos de trigo sem semente."
Ao ouvir a resposta de Ishtar, Anu entregou-lhe o Touro do Céu para que fosse conduzido pelo cabresto até Uruk. Quando eles chegaram aos portões da cidade, o Touro dirigiu-se ao rio. Ele bufou uma vez e a terra abriu-se em fendas, engolindo a vida de cem homens. Ele bufou uma segunda vez e mais fendas se abriram, levando a vida de duzentos homens.
Na terceira vez novas fendas se abriram, lançando Enkidu para a frente; mas ele imediatamente recuperou o equilíbrio, se esquivou e lançou-se sobre o touro agarrando-o pelos chifres. O Touro do Céu espumava em seu rosto e o escoriava com a parte mais grossa de sua cauda. Enkidu gritou para Gilgamesh: "Amigo, nós alardeamos que deixaríamos uma fama duradoura atrás de nossos nomes. Agora enfia tua espada entre a nuca e os chifres do touro." Gilgamesh foi então atrás da fera, agarrou o talo de sua cauda, enfiou a espada entre sua nuca e seu chifre e a matou. Depois de matarem o Touro do Céu, eles arrancaram seu coração e o ofereceram a Shamash. Os dois irmãos então descansaram.
Mas Ishtar levantou-se e escalou a grande muralha de Uruk; ela pulou para a torre e proferiu uma maldição: "Ai de Gilgamesh, pois zombou de mim ao matar o Touro do Céu." Ao ouvir essas palavras, Enkidu arrancou a coxa direita do touro e atirou-lhe ao rosto, dizendo: "Se pudesse colocar minhas mão em ti, é isso que te faria, e açoitaria com as entranhas o teu corpo." Ishtar então conclamou sua gente, as prostitutas do templo, as jovens que cantavam e dançavam, as cortesãs. Em torno da coxa do Touro do Céu, organizou um velório de choro e lamentação.
Mas Gilgamesh reuniu todos os ferreiros e alfagemes. Eles ficaram impressionados com a imensidão dos chifres, que eram revestidos de uma camada de lápis-lazúli de duas polegadas de espessura. Cada um deles pesava quinze quilos, e em seu interior cabia o equivalente a seis medidas de óleo, que Gilgamesh ofereceu ao seu deus protetor, Lugulbanda. Mas ele levou os chifres para o palácio e os pendurou na parede. Eles então lavaram suas mãos no Eufrates, abraçaram-se e foram embora. Atravessaram as ruas de Uruk, onde os heróis haviam se reunido para vê-los, e Gilgamesh virou-se para as jovens que cantavam e gritou: "Quem é o mais glorioso dos heróis, quem é o mais eminente entre os homens?" "Gilgamesh é o mais glorioso dos heróis, Gilgamesh é o mais eminente entre os homens." Houve então um banquete, e festejos, e o palácio encheu-se de alegria, até os heróis se deitarem, dizendo: "Descansaremos agora até o amanhecer."
Quando a manhã chegou, Enkidu levantou-se e gritou para Gilgamesh: "Oh, meu irmão, que sonho tive esta noite. Anu, Enlil, Ea e o celestial Shamash se reuniram em conselho, e Anu disse a Enlil: 'Por terem matado o Touro do Céu e por terem morto Humbaba, que tomava conta da Montanha de Cedro, um dos dois tem de morrer.' O glorioso Shamash respondeu então ao herói Enlil: 'Foi sob tuas ordens que eles mataram Humbaba e o Touro do Céu, será que Enkidu tem de morrer apesar de ser inocente?' Enlil virou-se bruscamente para o glorioso Shamash e disse, em fúria: 'Ousas dizer uma coisa dessas, tu que estavas sempre a acompanhá-los como se fosses um deles!' '
Enkidu jazia estendido diante do amigo. Suas lágrimas vertiam copiosamente, e ele disse a Gilgamesh: "Oh, meu irmão, és tão querido por mim, e eles no entanto vão tirar-me de ti." Ele tornou a falar: "Devo sentar-me à entrada da casa dos mortos e jamais tornar a ver com meus olhos o meu querido irmão."
Solitário e enfermo em seu leito, Enkidu amaldiçoava o portão como se ele fosse de carne viva: "Tu, madeira do portão, inerte, insensível e apática; viajei vinte léguas procurando por ti, até achar o gigantesco cedro. Não há madeira igual em nossa terra. Setenta e dois côvados de altura e vinte quatro de largura; eixo, virola e batente perfeitos. Foste feito pelo mestre dos artesãos de Nippur; mas, ai, se eu soubesse o que aconteceria! Se soubesse que serias o único bem resultante desta aventura, teria levado o machado ao ar e te feito em pedaços, e em teu lugar construiria aqui um portão de vime. Ai, se pelo menos tivesses chegado aqui por obra de algum futuro rei, ou se um deus te tivesse criado! Que ele apague o meu nome e o substitua pelo seu; que a maldição recaia sobre sua cabeça em vez de tombar sobre a de Enkidu."
Ao primeiro brilho da alvorada, Enkidu levantou a cabeça e chorou diante do Deus-Sol; suas lágrimas corram por seu rosto ao brilho da luz solar. "Deus-Sol, eu vos imploro, a respeito daquele caçador infame, aquele caçador vil, por culpa de quem vim a receber menos que meu companheiro; fazei com que capture menos presas, tornai a caça mais escassa, fazei com que ele se enfraqueça, que receba a menor parte nas divisões entre os caçadores, que suas vítimas fujam de suas armadilhas."
Depois de imprecar contra o caçador até desabafar seu coração, ele se voltou para a rameira. Crescera nele uma necessidade de também amaldiçoá-la. "Quanto a ti, mulher, lanço-te uma grande maldição! Prometo-te um destino para toda a eternidade. Minha praga se abaterá sobre ti imediata e repentinamente. Ficarás sem teto para o teu comércio, pois não manterás casa com outras mulheres na taberna, mas terás de realizar teu negócio em lugares fétidos e empestados pelo vômito do bêbado. Teu preço será barato; teus pequenos furtos serão lançados com desdém ao chão de tua choupana; tu te sentarás na encruzilhada poeirenta do quarteirão dos oleiros; farás tua cama à noite sobre um monte de estrume, e durante o dia tomaras teu lugar sob a sombra da muralha. Sarças e espinhos rasgarão teus pés; o bêbado e o sóbrio te golpearão o rosto e sentirás dores na boca. Que sejas despojada de tuas tintas purpúreas, pois também eu na selva com minha mulher tinha todos os tesouros que desejava."
Ao ouvir as palavras de Enkidu, Shamash gritou-lhe do céu: "Enkidu, por que amaldiçoas a mulher, a concubina que te ensinou a comer pão digno dos deuses e a beber o vinho dos reis? Ela, que colocou sobre ti um magnífico traje, não foi ela quem te deu o glorioso Gilgamesh por companheiro, e Gilgamesh, teu próprio irmão, não fez ele com que te deitasses num leito real e te reclinasses sobre um diva à esquerda de seu trono? Ele fez com que os príncipes da terra beijassem teus pés, e hoje todo o povo de Uruk chora e se lamenta por ti. Quando morreres, ele deixará seus cabelos crescerem por tua causa; ele vestirá a pele de um leão e vagueará pelo deserto."
Ao ouvir as palavras do glorioso Shamash, seu coração colérico se acalmou; ele retirou a maldição e disse: "Mulher, prometo-te um outro destino. A boca que te amaldiçoou agora te abençoa! Serás adorada por reis, príncipes e nobres. Embora a doze milhas de distância, exercerás forte atração sobre um homem e o perturbarás. Ele te abrirá as portas de seu tesouro e terás tudo o que desejares: lápis-lazúli, ouro e cornalina, tirados da sua pilha de tesouros. Ganharás um anel para teu dedo e um manto. Um sacerdote de conduzirá à presença dos deuses. Por tua causa uma esposa, mãe de sete, foi abandonada."
Enquanto Enkidu dormia sozinho em sua enfermidade, com o coração amargurado ele se virou para o amigo e desabafou: “Fui eu quem abateu o cedro, quem limpou a floresta, quem matou Humbaba, e agora olha o que me aconteceu”. Escuta, meu amigo, o sonho que tive esta noite. Os céus troavam e a terra rugia de volta; entre os dois estava eu, diante de um ser aterrador, o homem-pássaro de feições sombrias. Ele havia me escolhido como presa. Seu rosto era como o de um vampiro, seus pés como as patas de um leão, suas mãos como as garras de uma águia. Ele se abateu sobre mim e suas presas agarraram minha cabeça; ele me apertou com força e me senti sufocar; ele então transformou meu corpo de tal maneira que meus braços viraram asas cobertas de penas. Ele me olhou fixamente e levou-me para o palácio de Irkalla, a Rainha das Trevas, à casa de onde ninguém que entra jamais torna a sair, à estrada sem retorno.
"Ali fica a casa onde as pessoas sentam-se no escuro, onde o pó é sua comida e o barro sua carne. Elas se vestem como os pássaros, tendo as asas como traje; elas não vêem a luz e sentam-se na escuridão. Eu entrei na casa do pó e vi os reis da terra, suas coroas guardadas para sempre; vi tiranos e príncipes, todos aqueles que outrora usavam coroas reais e governavam o mundo. Aqueles que no passado haviam ocupado o lugar de deuses como Anu e Enlil agora trabalhavam como servos, buscando carne assada na casa do pó e carregando carne cozida e água fria tirada do odre. Na casa do pó em que entrei estavam os altos sacerdotes e os acólitos, os sacerdotes do êxtase e do encantamento; lá se encontravam os servidores do templo e Etana, o rei de Kish, a quem outrora a águia carregou para o céu. Também vi Samuqan, o deus do gado, e Ereshkigal, a Rainha do Mundo Inferior; e, agachada em frente a ela, Belit-Sheri, escriba dos deuses e guardiã do livro da morte. Ela estava lendo uma tábua que tinha em suas mãos. Ela levantou a cabeça, me viu e falou: 'Quem trouxe este aqui?' Eu então acordei e parecia um homem sangrado que erra solitário por entre os juncos; alguém que foi agarrado pelo intendente e cujo coração bate disparado, cheio de agonia e terror."
Gilgamesh havia se despido; ele escutou as palavras do amigo e chorou intensamente. Ele abriu a boca e disse a Enkidu: "Quem na Uruk das poderosas muralhas tem tamanha sabedoria? Coisas estranhas foram ditas, por que teu coração fala assim tão estranhamente? Teu sonho foi grandioso, mas terrível; devemos conservá-lo na memória apesar de seus horrores, pois ele demonstra que a miséria acaba abatendo-se sobre o homem saudável, que o fim da vida é doloroso." E Gilgamesh lamentou: "Rezarei agora aos grandes deuses, pois meu amigo teve um sonho ominoso."
O dia do sonho chegou ao fim, e Enkidu jazia enfermo. Passou um dia inteiro no leito e seu sofrimento aumentou. Enkidu disse a Gilgamesh, o amigo por quem ele abandonara sua vida no meio da natureza: "Houve época em que lutei por ti, pela água da vida, e agora eu não tenho nada." Enkidu passou um segundo dia no leito e Gilgamesh velou por ele, mas a doença piorou. No terceiro dia, ele chamou Gilgamesh, acordando-o. Enkidu estava fraco e seus olhos já não enxergavam mais de tanto chorar. Dez dias se passaram e seu sofrimento aumentava; onze, doze dias, e Enkidu continuava em seu leito de dor. Ele então chamou Gilgamesh e disse: "Amigo, a grande deusa me amaldiçoou e devo morrer na vergonha. Não morrerei como um homem que tomba durante a batalha; eu temia ser derrubado na luta, mas feliz é aquele que morre lutando, pois eu morrerei na vergonha." E Gilgamesh chorou por Enkidu. Ao primeiro brilho da alvorada ele elevou sua voz e falou aos conselheiros de Uruk:

"Ouvi-me, homens ilustres de Uruk,
Choro por Enkidu, meu amigo.
Com as lagrimas pungentes da mulher aflita
Choro por meu irmão.
Oh, Enkidu, meu companheiro,
Foste o machado que levava ao meu lado,
A força do meu braço, a espada em meu cinturão,
O escudo que me protegia,
Um glorioso manto, meu mais belo ornamento;
Um destino cruel roubou-o de mim.
O asno selvagem e a gazela
Que como pai e mãe te criaram,
Todas as criaturas de cauda longa que te alimentaram
Choram por ti.
Todas as coisas agrestes das campinas e dos pastos,
As trilhas que amavas na floresta dos cedros,
Noite e dia murmuram.
Que os homens ilustres de Uruk,
A cidade das poderosas muralhas,
Chorem por ti;
Que o dedo que abençoa
Se estenda para pranteá-lo.
Enkidu, meu jovem irmão, ouve,
Um eco atravessa todo o país
Como um lamento de mãe.
Choram todos os caminhos que juntos percorremos,
E as feras que caçamos: o urso e a hiena,
O tigre e a pantera, o leopardo c o leão,
O veado e o cabrito montes, o touro c a corça.
Os rios cujas margens percorríamos
Choram por ti,
O Ula do Elam e o querido Eufrates,
De onde tirávamos água para os odres.
A montanha que escalamos para o Sentinela matar
Chora por ti.
Os guerreiros de Uruk,
Cidade das poderosas muralhas,
Onde o Touro do Céu foi morto,
Choram por ti.
Todo o povo de Endu
132
Chora por ti, Enkidu.
Aqueles que trouxeram cereais para conteres
Choram agora por ti;
Que o óleo em tuas costas esfregavam
Choram agora por ti;
Que te enchiam o copo de cerveja
Choram agora por ti;
A meretriz que com o perfumado ungüento te untava
Lamenta-se agora por ti;
As mulheres do palácio, que te deram uma esposa,
Um grupo seleto de boas conselheiras,
Lamentam-se agora por ti.
E os jovens, teus irmãos,
Como se fossem mulheres
De cabelos compridos choram por ti.
Que sono é este que em seu poder te mantém?
Estas perdido no escuro e não me podes ouvir."

Gilgamesh tocou o coração de Enkidu, mas ele já não batia; seus olhos também não tornaram a se abrir. Gilgamesh então cobriu o amigo com um véu, como o noivo cobre a noiva. E pôs-se a urrar, a desabafar sua fúria como um leão, como uma leoa cujos filhotes lhe foram roubados. Vagueou em torno da cama, arrancou seus cabelos e os espalhou por toda parte. Arrancou seus magníficos mantos e atirou-os ao chão como se fossem abominações.
Ao primeiro brilho da alvorada, Gilgamesh gritou: "Fiz com que te deitasses num leito real, te reclinaste sobre um diva à esquerda de meu trono, os príncipes da terra beijaram teus pés. Farei com que todo o povo de Uruk chore por ti e te cante hinos fúnebres. As pessoas alegres se curvarão de dor; e, depois de desceres à terra, deixarei que meu cabelo cresça em tua homenagem e errarei pelas matas na pele de um leão." De novo no dia seguinte, ao primeiro brilho da aurora, Gilgamesh se lamentou; por sete dias e sete noites ele chorou por Enkidu, até que os vermes tomaram-lhe o corpo. Somente então Gilgamesh entregou Enkidu à terra, pois os Anunnaki, os juizes do mundo inferior, o haviam capturado.
Gilgamesh então mandou proclamar um edito por todo país. Ele convocava todos os caldeireiros, ourives e pedreiros e os intimava: "Fazei uma estátua de meu amigo." A estátua foi moldada com grande quantidade de lápis-lazuli no peito e de ouro no resto do corpo. Foi então montada uma mesa de madeira de lei, e em cima dela foram colocadas uma tigela de cornalina cheia de mel e uma de lápis-lazuli contendo manteiga. Gilgamesh as ofereceu ao Sol, e, chorando, partiu.



4. A busca da vida eterna

Gilgamesh chorou amargamente por seu amigo Enkidu. Ele errou pelas matas como um caçador e vagueou pelas planícies. Em sua tristeza ele gritou: "Como posso descansar, como posso ficar em paz? O desespero se instalou em meu coração. Isso que meu irmão é agora, o mesmo serei eu quando morrer. Por medo da morte farei o possível para encontrar Utnapishtim, a quem chamam o Longínquo, pois ele se juntou à assembléia dos deuses." Gilgamesh então correu o mundo selvagem; vagou pelos campos e pastos numa longa jornada em busca de Utnapishtim, a quem os deuses acolheram após O dilúvio e instalaram na terra de Dilmum, no jardim do sol; e somente a ele, entre todos os homens, os deuses concederam a vida eterna.
A noite, chegando ao desfiladeiro da montanha, Gilgamesh rezou: "Neste desfiladeiro, há muito tempo atrás, encontrei leões. Tive medo e elevei meu olhar para a lua. Eu rezei e os deuses escutaram minha prece; por isso agora, oh, Sin, deus da lua, protegei-me." Após a oração, ele se deitou para dormir, até ser acordado de um sonho. Ele se viu rodeado de leões que se regozijavam de estarem vivos; tomou então o machado nas mãos, sacou a espada de seu cinturão e se lançou sobre eles como uma flecha disparada por um arco. Ele golpeou as feras, matou-as e dispersou-as.
Finalmente Gilgamesh chegou a Mashu, as grandes montanhas que guardam o nascer e o pôr do sol e sobre as quais ele havia ouvido muitas histórias. Seus picos são gêmeos e da altura das muralhas do céu; suas encostas descem até o mundo inferior. Os Escorpiões vigiam sua entrada. Eles são metade homem e metade dragão; sua fama inspira terror, seu olhar é mortal aos homens e o brilho tremeluzente que deles emana varre as montanhas que guardam o nascer do sol. Ao vê-los, Gilgamesh protegeu os olhos, mas apenas por alguns momentos; ele então tomou coragem e se aproximou. Vendo-o com um ar tão impávido, o Homem-Escorpião gritou para seu companheiro: "Este que ora se aproxima tem a carne dos deuses." Seu companheiro respondeu: "Ele é dois terços deus, mas um terço homem."
Ele então gritou para o homem Gilgamesh, ele gritou para o filho dos deuses: "Por que fizeste tão longa jornada? Por que viajaste de tão longe, cruzando os perigosos mares? Dize-me a razão de tua vinda." Gilgamesh respondeu: "Por Enkidu, a quem muito amava. Juntos enfrentamos todos os tipos de dificuldade. Por causa dele eu vim, pois caiu vítima do destino que assola os homens. Chorei por ele noite e dia e me recusava a entregar seu corpo para o funeral. Pensei que meu pranto fosse trazê-lo de volta. Desde sua partida minha vida deixou de ter sentido; por isso viajei até aqui em busca de Utnapishtim, meu pai; pois diz-se que ele se juntou aos deuses e que encontrou a vida eterna. Desejo fazer-lhe algumas perguntas com relação aos vivos e os mortos." O Homem-Escorpião abriu a boca e disse, falando a Gilgamesh: "Nenhum homem nascido de mulher fez o que tu pedes, nenhum mortal jamais entrou na montanha. Ela se estende por doze léguas de escuridão; não há luz em seu interior e o coração se sente oprimido pelas trevas. Do nascer ao pôr do sol, não há nada além de escuridão." Gilgamesh disse: "Embora seja para mim um caminho de tristeza e dor, de gemidos e lágrimas, ainda assim devo tomá-lo. Abri o portão da montanha." E o Homem-Escorpião disse: "Vai, Gilgamesh. Permitirei que atravesses a montanha de Mashu e as elevadas cordilheiras; que teus pés te levem ao destino em segurança. O portão da montanha está aberto."
Gilgamesh escutou o que o Homem-Escorpião lhe disse e seguiu, através da montanha, pela estrada do sol até o lugar de seu nascente. Depois de caminhar por uma légua, a escuridão se intensificou ao seu redor, pois não havia mais luz; ele não conseguia enxergar nada, nem o que estava à frente nem o que estava atrás. Depois de duas léguas a escuridão era intensa e não havia luz; ele não conseguia enxergar nada, nem o que estava à frente nem o que estava atrás. Depois de três léguas a escuridão era intensa e não havia luz; ele não conseguia enxergar nada, nem o que estava à frente nem o que estava atrás. Depois de quatro léguas a escuridão era intensa e não havia luz; ele não conseguia enxergar nada, nem o que estava à frente nem o que estava atrás. Ao final de cinco léguas a escuridão era intensa e não havia luz; ele não conseguia enxergar nada, nem o que estava à frente nem o que estava atrás. Ao final de seis léguas a escuridão era intensa e não havia luz; ele não conseguia enxergar nada, nem o que estava à frente nem o que estava atrás. Depois de percorrer sete léguas a escuridão era intensa e não havia luz; ele não conseguia enxergar nada, nem o que estava à frente nem o que estava atrás. Depois de percorrer oito léguas, ele soltou um grande grito, pois a escuridão era intensa e ele não conseguia enxergar nada, nem o que estava à frente nem o que estava atrás. Depois de nove léguas, ele sentiu o vento norte em seu rosto, mas a escuridão era intensa e não havia luz; ele não conseguia enxergar nada, nem o que estava à frente nem o que estava atrás. Depois de dez léguas, o final estava próximo. Depois de onze léguas apareceram os primeiros raios da alvorada. Ao final de doze léguas a luz do sol enfim refulgiu.
Lá estava o jardim dos deuses; por todos os lados cresciam arbustos carregados de pedras preciosas. Ao vê-los, ele imediatamente se aproximou, pois havia frutas de cornalina pendendo de uma parreira, lindas de ver; folhas de lápis-lazúli cresciam em profusão por entre as frutas e eram doces ao olhar. No lugar dos espinhos e dos cardos encontravam-se as hematitas e as pedras raras, e mais a ágata e pérolas do mar. Shamash viu Gilgamesh caminhando pelo jardim à beira do mar, e ele viu que o herói estava vestido com peles de animais e que se alimentava de sua carne. Isto o aborreceu, e falando ele disse: "Nenhum mortal jamais tomou este caminho antes, nem tomará, enquanto os ventos soprarem por sobre os mares." E virando-se para Gilgamesh ele falou: "Jamais encontrarás a vida que procuras." Gilgamesh respondeu ao glorioso Shamash: "Então, depois de errar e me esfalfar pela vastidão selvagem, terei ainda de dormir e deixar que a terra cubra para sempre a minha cabeça? Que meus olhos fitem o sol até seu brilho ofuscá-los. Embora não seja melhor que um homem morto, ainda assim deixai-me contemplar a luz do sol." Ao lado do mar ela vive, a mulher do vinhedo, a fabricante de vinho. Siduri fica sentada no jardim à beira do mar, com a tigela e os tonéis de ouro que os deuses lhe deram. Ela está coberta por um véu e, de onde se encontra, vê Gilgamesh se aproximar, vestindo peles, com a carne dos deuses no corpo, mas com o desespero no coração. Seu rosto era como o de alguém que chegou de uma longa jornada. Ela olhou e, observando com atenção o que se passava a distância, disse para si mesma: "Trata-se sem dúvida de um criminoso; aonde estará indo?" E ela fechou o portão com a tranca e passou-lhe o ferrolho. Mas Gilgamesh, ao ouvir o barulho do ferrolho, lançou a cabeça para a frente e deteve a porta com o pé. Ele gritou para Siduri: "Jovem fabricante de vinho, por que trancas tua porta? O que viste que te fez trancar teu portão? Quebrarei tua porta e arrebentarei teu portão, pois sou Gilgamesh, que capturou e matou o Touro do Céu. Eu matei o sentinela da floresta de cedro, derrubei Humbaba que vivia na floresta e matei os leões no desfiladeiro da montanha."
Siduri então disse a ele: "Se és o Gilgamesh que capturou e matou o Touro do Céu, que matou o sentinela da floresta de cedro, que derrubou Humbaba que vivia na floresta e matou os leões no desfiladeiro da montanha, por que tens as faces tão encovadas e o rosto tão abatido? Por que trazes o desespero em teu coração, e por que teu rosto lembra o de alguém que chega de uma longa jornada? Sim, por que tua face está queimada pelo calor e pelo frio, e por que chegas aqui vagando pelos pastos à procura do vento?"
Gilgamesh respondeu-lhe: "E por que meu rosto não haveria de estar encovado e abatido? Trago o desespero em meu coração; meu rosto lembra o de alguém que chega de uma longa jornada e foi queimado pelo calor e pelo frio. Por que não haveria de vagar pelos pastos à procura do vento? Meu amigo, meu irmão mais novo, que caçava o asno selvagem e a pantera das campinas, meu amigo, meu irmão mais novo, que capturou e matou o Touro do Céu e derrubou Humbaba na floresta de cedro, meu amigo, alguém que me era caríssimo e que enfrentou muitos perigos ao meu lado, Enkidu, meu irmão, a quem tanto amava, a morte o alcançou. Chorei por ele durante sete dias e sete noites, até os vermes tomarem-lhe o corpo. Por causa do meu irmão, tenho medo da morte; por causa do meu irmão, vagueio pelas matas e pelos campos e não consigo descansar. Mas agora, oh, jovem que prepara o vinho, já que vi tua face, não permita que eu veja a face da morte a quem tanto temo."
Ela respondeu: "Gilgamesh, onde vais com tanta pressa? Jamais encontrarás a vida que procuras. Quando os deuses criaram o homem, eles lhe destinaram a morte, mas a vida eles mantiveram em seu próprio poder. Quanto a ti, Gilgamesh, enche tua barriga de iguarias; dia e noite, noite e dia, dança e sê feliz, aproveita e deleita-te. Veste sempre roupas novas, banha-te em água, trata com carinho a criança que te tomar as mãos e faze tua mulher feliz com teu abraço; pois isto também é o destino do homem."
Mas Gilgamesh disse a Siduri, a jovem: "Como posso ficar calado, como posso descansar, quando Enkidu, a quem amo, tornou-se pó, e quando também por mim a morte e a terra esperam? Vives à beira do oceano e vês o seu interior; dize-me, oh, jovem, como chegar a Ut-napishtim, o filho de Ubara-Tutu. O que preciso saber para chegar até ele? Instruí-me, dize o que tenho de fazer. Atravessarei o Oceano se isto for possível; se não for, vagarei por regiões ainda mais desoladas." A fabricante de vinho lhe disse: "Gilgamesh, não há como atravessar o Oceano; todos os que aqui vieram, desde os dias de outrora, não conseguiram viajar pelo mar. O Sol em sua glória atravessa o Oceano, mas quem além de Shamash jamais logrou tal feito? O lugar é perigoso e a passagem difícil; as águas da morte que por ali correm são profundas. Gilgamesh, como vais atravessar o Oceano? Quando chegares às águas da morte, o que farás? Mas, Gilgamesh, no meio da floresta encontrarás Urshanabi, o barqueiro de Ut-napishtim; com ele estão os objetos sagrados, os objetos de pedra. Ele está talhando a proa do barco em forma de serpente. Observa-o bem. Se for possível, talvez consigas atravessar as águas do Oceano com ele; se não, terás de voltar."
Ao ouvir isso, Gilgamesh ficou furioso. Ele tomou o machado em uma das mãos e sacou o punhal de seu cinturão. Gilgamesh avançou furtivamente e se atirou como um dardo em cima dos apetrechos do barco. Então voltou para dentro da floresta e sentou-se. Urshanabi viu o brilho da faca e escutou o machado, e ficou perplexo, pois Gilgamesh, em sua fúria, havia destroçado o equipamento da embarcação. Urshanabi disse a ele: "Dize-me, qual é o teu nome? Sou Urshanabi, o barqueiro de Utnapish-tim, o Longínquo." Ele lhe respondeu: "Gilgamesh é meu nome. Sou de Uruk, da casa de Anu." Urshanabi perguntou-lhe então: "Por que tens as faces tão encovadas e o rosto tão abatido? Por que trazes o desespero em teu coração, e por que teu rosto lembra o de alguém que chega de uma longa jornada? Sim, por que tua face está queimada pelo calor e pelo frio, e por que chegas aqui vagando pelos pastos à procura do vento?"
Gilgamesh disse-lhe: "E por que meu rosto não haveria de estar encovado e abatido? Trago o desespero em meu coração; meu rosto lembra o de alguém que chega de uma longa jornada e foi queimado pelo calor e pelo frio. Por que não haveria de vagar pelos pastos à procura do vento? Meu amigo, meu irmão mais novo, que capturou e matou o Touro do Céu e derrubou Humbaba na floresta de cedro, meu amigo, alguém que me era caríssimo e que enfrentou muitos perigos ao meu lado, Enkidu, meu irmão, a quem tanto amava, a morte o alcançou. Chorei por ele durante sete dias e sete noites, até os vermes tomarem-lhe o corpo. Por causa do meu irmão, tenho medo da morte; por causa do meu irmão, vagueio pelas matas e pelos campos. Seu destino pesa sobre mim. Como posso descansar, como posso ficar em paz? Ele virou pó e também eu vou morrer e ser enterrado para sempre. Tenho medo da morte; por isso, Urshanabi, mostre-me o caminho para chegar até Utnapishtim. Se for possível, atravessarei as águas da morte, se não for, vagarei por regiões ainda mais desoladas."
Urshanabi disse a ele: "Gilgamesh, foram tuas próprias mãos que tornaram impossível tua travessia do Oceano; ao destruíres o equipamento do barco, destruíste também sua segurança." Os dois então discutiram o assunto e Gilgamesh disse: "Por que estás tão zangado comigo, Urshanabi? Pois tu mesmo atravessas o mar dia e noite; em qualquer estação tu o atravessas." "Gilgamesh, estes objetos que destruíste tinham a propriedade de levar-me por sobre as águas da morte, impedindo-as de tocarem em mim. Era por esta razão que eu os preservava, mas tu os destruíste, e com eles liquidaste também as serpentes urnu. Mas vai agora à floresta, Gilgamesh, corta com teu machado cento e vinte toras de sessenta côvados de cumprimento, pinta-as com betume, reforça-as com virolas e traze-as de volta para mim."
Ao ouvir isso, ele foi à floresta, cortou cento e vinte toras de sessenta côvados de cumprimento, pintou-as com betume, reforçou-as com virolas e trouxe-as de volta para Urshanabi. Eles então subiram no barco, Gilgamesh e Urshanabi, e o lançaram sobre as ondas do Oceano. Durante três dias eles singraram o mar com velocidade, percorrendo o equivalente a uma jornada de um mês e quinze dias. Urshanabi por fim levou o barco às águas da morte. Ele então disse para Gilgamesh: "Vai em frente, pega uma das toras e empurra-a para dentro do mar, mas não encostes tua mão na água. Gilgamesh, pega uma segunda tora, uma terceira, uma quarta. Agora, Gilgamesh, pega uma quinta, uma sexta e uma sétima tora. Gilgamesh, pega uma oitava, uma nona e uma décima tora. Gilgamesh, pega uma décima primeira; pega uma décima segunda tora." Depois de empurrar para dentro d'água cento e vinte toras, Gilgamesh ficou sem nenhuma. Ele então tirou a roupa e elevou seus braços para cima para servir de mastro, e usou suas vestimentas como vela. Assim Urshanabi, o barqueiro, trouxe Gilgamesh até Utnapishtim, a quem chamam o Longínquo e que vive em Dilmun, a leste da Montanha, no lugar por onde transita o sol. Somente a ele, entre todos os homens, os deuses concederam a vida eterna.
Enquanto isso, Utnapishtim, confortavelmente instalado, observava tudo a distância e, dentro de seu coração, meditava: "Por que o barco navega por aqui sem seu mastro e sem equipamento? Por que foram destruídas as pedras sagradas, e por que o barco não é conduzido por seu capitão? Aquele homem que chega não é um dos meus; vejo um homem coberto com pele de animais. Quem é este que vem pela praia atrás de Urshanabi, pois certamente que não é um dos meus homens?" Utnapishtim então olhou para ele e disse: "Qual é o teu nome, tu que chegas vestido de pele de animais, com as bochechas famintas e o rosto abatido? Aonde vais com pressa? Por que razão fizeste uma jornada tão longa, atravessando mares cuja passagem é tão difícil? Dize-me a razão de tua vinda."
Ele respondeu: "Gilgamesh é meu nome. Sou de Uruk, da casa de Anu." Utnapishtim então disse a ele: "Se és Gilgamesh, por que tens as faces tão encovadas e o rosto tão abatido? Por que trazes o desespero em teu coração, e por que teu rosto lembra o de alguém que chega de uma longa jornada? Sim, por que tua face está queimada pelo calor e pelo frio, e por que chegas aqui vagando pelos pastos à procura do vento?"
Gilgamesh disse-lhe: "E por que meu rosto não haveria de estar encovado e abatido? Trago o desespero em meu coração; meu rosto lembra o de alguém que chega de uma longa jornada e foi queimado pelo calor e pelo frio. Por que não haveria de vagar pelos pastos à procura do vento? Meu amigo, meu irmão mais novo, que capturou e matou o Touro do Céu e derrubou Humbaba na floresta de cedro, meu amigo, alguém que me era caríssimo e que enfrentou muitos perigos ao meu lado, Enkidu, meu irmão, a quem tanto amava, a morte o alcançou. Chorei por ele durante sete dias e sete noites, até os vermes tomarem-lhe o corpo. Por causa do meu irmão, tenho medo da morte; por causa do meu irmão, vagueio pelas matas e pelos campos. Seu destino pesa sobre mim. Como posso descansar, como posso ficar em paz? Ele virou pó e também eu vou morrer e ser enterrado para sempre." Gilgamesh tornou a dizer, falando a Utnapishtim: "Foi para ver Ut-napishtim, a quem chamamos o Longínquo, que fiz esta jornada. Por isso vagueei pelo mundo, atravessei tantas cordilheiras perigosas, cruzei os mares e me esfalfei viajando; minhas juntas doem e há muito que já não sei o que é uma doce noite de sono. Minhas roupas se esfarraparam antes de chegar à casa de Siduri. Matei o urso e a hiena, o leão e a pantera, o veado e o cabrito montes, o tigre e todos os tipos de caça, e também as pequenas criaturas dos pastos. Comi sua carne e vesti suas peles; e foi assim que cheguei ao portão da jovem fabricante de vinho, que fechou contra mim seu portão de piche e betume. Mas recebi dela instruções sobre a jornada e cheguei então até Urshanabi, o barqueiro, com quem atravessei as águas da morte. Oh, pai Utnapishtim, tu que te juntas-te à assembléia dos deuses, desejo fazer-te algumas perguntas sobre os vivos e os mortos: como encontrar a vida que estou buscando?"
Utnapishtim disse: "Não existe permanência. Acaso construímos uma casa para que fique de pé para sempre, ou selamos um contrato para que valha por toda a eternidade? Acaso os irmãos que dividem uma herança esperam mantê-la eternamente, ou o período de cheia do rio dura para sempre? Somente a ninfa da libélula despe-se da larva e vê o sol em toda a sua glória. Desde os dias antigos, não existe permanência. Como são parecidos os adormecidos e os mortos, eles são como um retrato da morte. O que existe entre o servo e o senhor depois de ambos terem cumprido seus destinos? Quando os Anunnaki, os juizes do mundo inferior, se reúnem com Mammetum, a mãe dos destinos, juntos eles decidem a sorte dos homens. Eles distribuem a vida e a morte, mas o dia da morte eles não revelam."
Gilgamesh então disse a Utnapishtim, o Longínquo: "Olho para ti, Utnapishtim, e vejo que és igual a mim; não há nada estranho em tuas feições. Pensei que fosse encontrar um herói preparado para a batalha, mas aqui estás, confortavelmente refestelado. Conta-me a verdade, como foi que vieste a te juntar aos deuses e ganhaste a vida eterna?" Utnapishtim disse a Gilgamesh: "Eu te revelarei um mistério; eu te contarei um segredo dos deuses."


5. A história do dilúvio

"Conheces a cidade de Shurrupak, que fica às margens do Eufrates? A cidade envelheceu, assim como os deuses que ah moravam. Havia Anu, o senhor do firmamento e pai da cidade; o guerreiro Enhl, seu conselheiro; Ninurta, o ajudante; e Ennugi, que vigiava os canais. Entre eles também se encontrava Ea. Naqueles dias a terra fervilhava, os homens multiplicavam-se e o mundo bramia como um touro selvagem. Este tumulto despertou o grande deus. Enlil ouviu o alvoroço e disse aos deuses reunidos em conselho: 'O alvoroço dos humanos é intolerável, e o sono já não é mais possível por causa da balbúrdia.' Os deuses então concordaram em exterminar a raça humana. Foi o que Enlil fez, mas Ea, por causa de sua promessa, me avisou num sonho. Ele denunciou a intenção dos deuses sussurrando para minha casa de colmo: 'Casa de colmo, casa de colmo! Parede, oh, parede da casa de colmo, escuta e reflete. Oh, homem de Shurrupak, filho de Ubara-Tutu, põe abaixo tua casa e constrói um barco. Abandona tuas posses e busca tua vida preservar; despreza os bens materiais e busca tua alma salvar. Põe abaixo tua casa, eu te digo, e constrói um barco. Eis as medidas da embarcação que deveras construir: que a boca extrema da nave tenha o mesmo tamanho que seu comprimento, que seu convés seja coberto, tal como a abóbada celeste cobre o abismo; leva então para o barco a semente de todas as criaturas vivas.'
"Quando compreendi, eu disse ao meu senhor: 'Sereis testemunha de que honrarei e executarei aquilo que me ordenais, mas como explicarei às pessoas, à cidade, aos patriarcas?' Ea então abriu a boca e falou a mim, seu servo: 'Dize-lhes isto: Eu soube que Enlil está furioso comigo e já não ouso mais caminhar por seu território ou viver em sua cidade; partirei em direção ao golfo para morar com o meu senhor Ea. Mas sobre vós ele fará chover a abundância, a colheita farta, os peixes raros e as ariscas aves selvagens. A noite, o cavaleiro da tempestade vos trará uma torrente de trigo.'
"Ao primeiro brilho da alvorada, toda a minha família se reuniu ao meu redor; as crianças trouxeram o piche e os homens todo o resto necessário. No quinto dia eu aprontei a quilha, montei a ossatura da embarcação e então instalei o tabuado. O barco tinha um acre de área e cada lado do convés media cento e vinte côvados, formando um quadrado. Construí abaixo mais seis conveses, num total de sete, e dividi cada um em nove compartimentos, colocando tabiques entre eles. Finquei cunhas onde elas eram necessárias, providenciei as zingas e armazenei suprimentos. Os carregadores trouxeram o óleo em cestas. Eu joguei piche, asfalto e óleo na fornalha. Mais óleo foi consumido na calafetagem, e mais ainda foi guardado no depósito pelo capitão da nave. Eu abati novilhos para a minha família e matava diariamente uma ovelha. Dei vinho aos carpinteiros do barco como se fosse água do rio, vinho verde, vinho tinto, vinho branco e óleo. Fez-se então um banquete como os que são preparados à época dos festejos do ano-novo; eu mesmo ungi minha cabeça. No sétimo dia, o barco ficou pronto.
"Foi com muita dificuldade então que a embarcação foi lançada à água; o lastro do barco foi deslocado para cima e para baixo até a submersão de dois terços de seu corpo. Eu carreguei o interior da nave com tudo o que eu tinha de ouro e de coisas vivas: minha família, meus parentes, os animais do campo — os domesticados e os selvagens — e todos os artesãos. Eu os coloquei a bordo, pois o prazo dado por Shamash já havia se esgotado; e ele disse: 'Esta noite, quando o cavaleiro da tempestade enviar a chuva destruidora, entra no barco e te fecha lá dentro.' Era chegada a hora. Caiu a noite e o cavaleiro da tempestade mandou a chuva. Tudo estava pronto, a vedação e a calafetagem; eu então passei o timão para Puzur-Amurri, o timoneiro, deixando todo o barco e a navegação sob seus cuidados.
"Ao primeiro brilho da alvorada chegou do horizonte uma nuvem negra, que era conduzida por Adad, o senhor da tempestade. Os trovões retumbavam de seu interior, e, na frente, por sobre as colinas e planícies, avançavam Shul-lat e Hanish, os arautos da tempestade. Surgiram então os deuses do abismo; Nergal destruiu as barragens que represavam as águas do inferno; Ninurta, o deus da guerra, pôs abaixo os diques; e os sete juizes do outro mundo, os Anunnaki, elevaram suas tochas, iluminando a terra com suas chamas lívidas. Um estupor de desespero subiu ao céu quando o deus da tempestade transformou o dia em noite, quando ele destruiu a terra como se despedaça um cálice. Por um dia inteiro o temporal grassou devastadoramente, acumulando fúria à medida que avançava e desabando torrencialmente sobre as pessoas como os fluxos e refluxos de uma batalha; um homem não conseguia ver seu irmão, nem podiam os povos serem vistos do céu. Até mesmo os deuses ficaram horrorizados com o dilúvio; eles fugiram para a parte mais alta do céu, o firmamento de Anu, onde se agacharam contra os muros e ficaram encolhidos como covardes. Foi então que Ishtar, a Rainha do Céu, de voz doce e suave, gritou como se estivesse em trabalho de parto: 'Ai de mim! Os dias de outrora estão virando pó, pois ordenei que se fizesse o mal; por que fui exigir esta maldade no conselho dos deuses? Eu impus as guerras para a destruição dos povos, mas acaso estes povos não pertencem a mim, pois fui eu quem os criou? Agora eles flutuam no oceano como ovas de peixe.' Os grandes deuses do céu e do inferno verteram lágrimas e se calaram.
"Por seis dias e seis noites os ventos sopraram; enxurradas, inundações e torrentes assolaram o mundo; a tempestade e o dilúvio explodiam em fúria como dois exércitos em guerra. Na alvorada do sétimo dia o temporal vindo do sul amainou; os mares se acalmaram, o dilúvio serenou. Eu olhei a face do mundo e o silêncio imperava; toda a humanidade havia virado argila. A superfície do mar se estendia plana como um telhado. Eu abri uma janelinha e a luz bateu em meu rosto. Eu então me curvei, sentei e chorei. As lágrimas rolavam pois estávamos cercados por uma imensidade de água. Procurei em vão por um pedaço de terra. A quatorze léguas de distância, porém, surgiu uma montanha, e ali o barco encalhou. Na montanha de Nisir o barco ficou preso; ficou preso e não mais se moveu. No primeiro dia ele ficou preso; no segundo dia ficou preso em Nisir e não mais se moveu. Um terceiro e um quarto dia ele ficou preso na montanha e não se moveu. Um quinto e um sexto dia ele ficou preso na montanha. Na alvorada do sétimo dia eu soltei uma pomba e deixei que se fosse. Ela voou para longe, mas, não encontrando um lugar para pousar, retornou. Então soltei uma andorinha, que voou para longe; mas, não encontrando um lugar para pousar, retornou. Então soltei um corvo. A ave viu que as águas haviam abaixado; ela comeu, voou de um lado para o outro, grasnou e não mais voltou para o barco. Eu então abri todas as portas e janelas, expondo a nave aos quatro ventos. Preparei um sacrifício e derramei vinho sobre o topo da montanha em oferenda aos deuses. Coloquei quatorze caldeirões sobre seus suportes e juntei madeira, bambu, cedro e murta. Quando os deuses sentiram o doce cheiro que dali emanava, eles se juntaram como moscas sobre o sacrifício. Finalmente, então, Ishtar também apareceu; ela suspendeu seu colar com as jóias do céu, feito por Anu para lhe agradar. 'Oh, vós, deuses aqui presentes, pelo lápis-lazúli que circunda meu pescoço, eu me lembrarei destes dias como me lembro das jóias em minha garganta; não me esquecerei destes últimos dias. Que todos os deuses se reúnam em torno do sacrifício; todos, menos Enlil. Ele não se aproximará desta oferenda, pois sem refletir trouxe o dilúvio; ele entregou meu povo à destruição.'
"Quando Enlil chegou e viu o barco, ele ficou furioso. Enlil se encheu de cólera contra o exército de deuses do céu. 'Alguns destes mortais escaparam? Ninguém deveria ter sobrevivido à destruição.' Então Ninurta, o deus das nascentes e dos canais, abriu a boca e disse ao guerreiro Enlil: 'E que deus pode tramar sem o consentimento de Ea? Somente Ea conhece todas as coisas.' Então Ea abriu a boca e falou para o guerreiro Enlil: 'Herói Enlil, o mais sábio dos deuses, como pudeste tão insensatamente provocar este dilúvio?

Inflige ao pecador o seu pecado,
Inflige ao transgressor a sua transgressão,
Pune-o levemente quando ele escapar,
Não exageres no castigo ou ele sucumbirá;
Antes um leão houvesse devastado a raça humana
Em vez do dilúvio,
Antes um lobo houvesse devastado a raça humana
Em vez do dilúvio,
Antes a fome houvesse assolado o mundo
Em vez do dilúvio.
Antes a peste houvesse assolado o mundo
Em vez do dilúvio.

Não fui eu quem revelou o segredo dos deuses; o sábio soube dele através de um sonho. Agora reuni-vos em conselho e decidi sobre o que fazer com ele.'
"Enlil então subiu no barco, pegou a mim e a minha mulher pela mão e nos fez entrar no barco e ajoelhar, um de cada lado, com ele no meio. E tocou nossas testas para abençoar-nos, dizendo: 'No passado, Utnapishtim era um homem mortal; doravante ele e sua mulher viverão longe, na foz dos rios.' Foi assim que os deuses me pegaram e me colocaram aqui para viver longe, na foz dos rios."


6. A volta

Utnapishtim disse: "Quanto a ti, Gilgamesh, quem irá reunir os deuses por tua causa, de maneira a poderes encontrar a vida que estás buscando? Mas, se quiseres, vem e põe-te à prova: terás apenas que lutar contra o sono por seis dias e sete noites." Mas, enquanto Gilgamesh estava lá sentado, descansando sobre as ancas, uma bruma de sono, semelhante à lã macia cardada do velocino, pairou sobre ele, e Utnapishtim disse a sua mulher: "Olha para ele agora, o homem forte e poderoso que quer viver por toda a eternidade; as brumas do sono já estão pairando sobre ele." Sua mulher replicou: "Toca no homem para acordá-lo, para que possa retornar em paz ao seu país, voltando pelo portão pelo qual entrou." Utnapishtim disse a sua mulher: "Todos os homens são impostores, até a ti ele tentará enganar; por isso, põe-te a assar pães, cada dia um, e coloca-os ao lado de sua cabeça; e marca na parede o número de dias que ele dormiu."
Ela então se pôs a assar os pães, cada dia um, e a colocá-los ao lado de cabeça de Gilgamesh, marcando na parede o número de dias que ele vinha dormindo. Chegou o dia em que o primeiro pão estava duro, o segundo parecia couro, o terceiro se encharcara, o bolor se formara na crosta do quarto, o quinto havia mofado, o sexto estava fresco e o sétimo ainda estava sobre as brasas. Utnapishtim então tocou em Gilgamesh e ele acordou. Gilgamesh disse a Utnapishtim, o Longínquo: "Eu mal havia começado a dormir quando tocaste em mim e me acordaste." Mas Utnapishtim disse: "Conta estes pães e vê quantos dias dormiste, pois o primeiro está duro, o segundo parece couro, o terceiro está encharcado, a crosta do quarto está embolorada, o quinto está mofado, o sexto está fresco e o sétimo ainda se encontrava sobre as brasas incandescentes quando toquei em ti e te acordei." Gilgamesh disse: "Oh, que farei, Utnapishtim, para onde irei? O ladrão da noite já se apoderou do meu corpo, a morte habita o meu espaço; encontro a morte onde quer que pouse meus pés."
Utnapishtim falou então a Urshanabi, o barqueiro: "Pobre de ti, Urshanabi, de agora em diante este porto de abrigo te odeia; ele não mais te acolherá, nem tampouco terás permissão para atravessar estas águas. Vai, agora, banido destas margens. Mas este homem, a quem conduziste, trazendo-o aqui, cujo corpo está coberto de imundície e cujos membros perderam sua graça e encanto, tendo sido deteriorados peIo uso de peles de animais, leva-o para se banhar. Ele então lavará seus cabelos na água, deixando-os limpos como a neve; jogará fora suas peles e deixará que as águas do oceano as levem para longe. A beleza de seu corpo será então revelada. A fita que ele usa na testa ficará como nova, e ele receberá roupas para cobrir sua nudez. Até que ele chegue à sua cidade de origem e até que complete sua jornada, estas roupas não darão sinal de uso e parecerão sempre novas." Assim, Urshanabi pegou Gilgamesh e levou-o para se banhar. Ele lavou seus cabelos, deixando-os limpos como a neve; ele jogou fora suas peles, que foram levadas para longe pelo mar. A beleza de seu corpo foi revelada. A fita que usava na testa ficou como nova, e ele recebeu roupas para cobrir sua nudez, roupas que não dariam sinais de uso, mas pareceriam sempre novas até que ele chegasse a sua cidade de origem e sua jornada chegasse ao fim.
Então Gilgamesh e Urshanabi colocaram o barco na água, embarcaram e se prepararam para partir; mas a mulher de Utnapishtim, o Longínquo, disse ao marido: "Gilgamesh chegou aqui exausto, está extenuado; o que darás a ele para levar de volta a seu país?" Então Utnapishtim falou, e Gilgamesh tomou uma zinga em suas mãos e trouxe o barco de volta à margem. "Gilgamesh, chegaste aqui exausto, e te extenuaste; o que darei a ti para levares de volta a teu país? Gilgamesh, eu te revelarei um segredo, é um mistério dos deuses que estou te revelando. Existe uma planta que cresce sob as águas; ela tem um espinho que espeta como o de uma rosa. Ela vai ferir tuas mãos, mas, se conseguires pegá-la, terás então em teu poder aquilo que restaura ao homem sua juventude perdida."
Ao ouvir isso, Gilgamesh abriu as comportas para que uma corrente de água doce pudesse levá-lo ao canal mais profundo. Amarrou pesadas pedras a seus pés e elas o arrastaram para baixo, até o leito do rio. Lá ele encontrou a planta que crescia sob a água. Embora ela o espetasse, Gilgamesh tomou-a nas mãos. Ele então cortou as pesadas pedras presas a seus pés e as águas o carregaram, atirando-o à margem. Gilgamesh disse para Urshanabi, o barqueiro: "Vem ver esta maravilhosa planta. Suas virtudes podem devolver ao homem toda a sua força perdida. Eu a levarei à Uruk das poderosas muralhas. Lá, eu darei a planta aos anciãos para que a comam. O nome dela será 'Os Velhos Voltaram A Ser Jovens'. E, finalmente, eu mesmo a comerei e recuperarei toda a minha juventude perdida." Gilgamesh então retornou pelo portão por onde havia entrado. Gilgamesh e Urshanabi viajaram juntos. Depois das primeiras vinte léguas, eles quebraram seu jejum; depois de mais trinta léguas, pararam para passar a noite.
Gilgamesh encontrou um poço de água fresca e entrou nele para se banhar; mas nas profundezas do poço havia uma serpente, e a serpente sentiu o doce cheiro que emanava da flor. Ela saiu da água e a arrebatou; e imediatamente trocou de pele e voltou para o fundo do poço. Gilgamesh então sentou-se e chorou. As lágrimas corriam por seu rosto e ele tomou a mão de Urshanabi: "Oh, Urshanabi, foi para isso que esfalfei minhas mãos? Foi para isto que arranquei sangue de meu coração? Nada obtive para mim, nada; mas a fera do poço agora usufrui do meu esforço. A corrente já arrastou a planta por vinte léguas, levando-a de volta aos canais onde a encontrei. Eu encontrei algo prodigioso e agora o perdi. Deixemos o barco nesta margem e vamos embora."
Depois de caminharem vinte léguas, eles quebraram seu jejum; depois de trinta léguas, eles pararam para passar a noite. Em três dias de viagem eles haviam percorrido a pé um percurso equivalente a uma jornada de um mês e quinze dias. Ao completarem a jornada, eles chegaram a Uruk, a cidade das poderosas muralhas. Gilgamesh falou a ele, a Urshanabi, o barqueiro: "Urshanabi, sobe na muralha de Uruk, inspeciona o terraço onde sua estrutura foi fundada, examina bem a alvenaria de tijolos; vê se não foram usados tijolos cozidos. Não foram os sete sábios que assentaram estas fundações? Um terço do todo é cidade, um terço é jardim e um terço é campo, incluindo o períbolo da deusa Ishtar. Estas partes e o períbolo formam toda a Uruk."
Isto também foi obra de Gilgamesh, o rei, que percorreu as nações do mundo. Ele era sábio, ele viu coisas misteriosas e conheceu muitos segredos. Ele nos trouxe uma história dos dias que antecederam o dilúvio. Partiu numa longa jornada, cansou-se, exauriu-se em trabalhos e, ao retornar, descansou e gravou na pedra toda a sua história.

7. A morte de Gilgamesh

O destino decretado por Enlil da montanha, o pai dos deuses, foi cumprido: "No mundo inferior a escuridão vai mostrar-lhe uma luz: na humanidade, por todas as gerações conhecidas, ninguém legará um monumento que se compare ao dele. Os heróis e os sábios, como a lua nova, têm seus períodos de ascensão e declínio. Os homens dirão: 'Quem jamais governou com tamanha força e tamanho poder?' Como no mês escuro, no mês das sombras, sem ele não há luz. Oh, Gilgamesh, era este o significado de teu sonho. Foi-te dado um trono, reinar era teu destino; a vida eterna não era teu destino. Assim, não fiques triste, não te atormentes, nem te deixes oprimir por causa disso. Ele te deu o poder de atar e desatar, de ser as trevas e a luz da humanidade. Ele te concedeu supremacia sem paralelo sobre o povo, vitória nas batalhas de onde não escapam fugitivos; o sucesso é teu nas incursões militares e nos implacáveis assaltos por ti empreendidos. Mas não abuses deste poder; se justo com teus servos no palácio, faze justiça ante a face do Sol."
O rei se deitou e não mais se levantara;
O Senhor de Kullab não mais se levantará;
Ele venceu o mal, ele não mais voltará;
Embora tivesse braços fortes, ele não mais se levantará;
Ele era sábio e tinha um belo rosto, ele não mais voltará;
Ele adentrou a montanha, ele não mais voltará;
Em seu leito fatídico ele jaz, ele não mais se levantará;
De seu divã multicolorido ele não mais voltará.

O povo da cidade, os grandes e os humildes, não estão em silêncio. Eles se lamentam em voz alta; toda a humanidade se lamenta em voz alta. O destino se cumpriu; como uma gazela apanhada num laço, como um peixe fisgado, ele jaz estirado sobre a cama. O desumano Namtar pesa sobre ele; Namtar, que não tem mão nem pé, que não bebe água nem come carne.
Por Gilgamesh, filho de Ninsun, eles fizeram inúmeras oferendas; sua esposa querida, seu filho, sua concubina, seus músicos, seu bufão e todos os que pertenciam à sua casa; seus servos, seus camareiros, todos os que viviam no palácio fizeram inúmeras oferendas a Gilgamesh, filho de Ninsun, o coração de Uruk. Eles fizeram inúmeras oferendas a Ereshkigal, a Rainha dos Mortos, e a todos os deuses do inferno. A Namtar, que é o destino, eles fizeram oferendas. Pão para Neti, o Sentinela do Portão; pão para Ningizzida, o deus da serpente, o senhor da Arvore da Vida; pão também para Dumuzi, o jovem pastor, para Enki e Ninki, para Endukugga e Nindukugga, para Enmul e Ninmul, todos eles deuses ancestrais, antepassados de Enlil. Um banquete para Shulpae, o deus dos festejos. Para Samuqan, o deus dos rebanhos, para a mãe Ninhursag e para todos os deuses da criação, para a hoste do céu, sacerdote e sacerdotisa fizeram inúmeras oferendas fúnebres. Gilgamesh, o filho de Ninsun, jaz em seu túmulo. No lugar das oferendas ele ofertou o pão, no lugar da libação ele derramou o vinho. Naqueles dias partiu o senhor Gilgamesh, o filho de Ninsun, o rei, o incomparável, um homem sem rival que não negligenciou Enlil, seu mestre. Oh, Gilgamesh, senhor de Kullab, grande é a tua glória.











NO SITE : www.klepsidra.net/klepsidra23 HÁ UMA COMPARAÇÃO INTERESSANTE ENTRE A EPOPÉIA DE GILGAMESH E A NARRATIVA BIBLICA DE GÊNESIS, EM ESPECIAL A HISTÓRIA DO DILÚVIO, COM SEGUE ABAIXO :

"As semelhanças narrativas encontradas entre Epopéia de Gilgamesh e o Livro do Gênesis iniciam-se logo nos primeiros versículos da bíblia, ou seja, na criação do homem. O povo de Uruk, descontente com a arrogância e luxúria do rei Gilgamesh, exige dos seus deuses a criação de um homem que fosse o reflexo do rei, e tão poderoso quanto ele para que pudesse enfrentá-lo e redimi-lo. O deus Anu, ouvindo o lamento da população, ordenou a Aruru, deusa da criação, que fizesse Enkidu:

“A deusa então concebeu em sua mente uma imagem cuja essência era a mesma de Anu, o deus do firmamento. Ela mergulhou as mãos na água e tomou um pedaço de barro; ela o deixou cair na selva, e assim foi criado o nobre Enkidu”.(SANDARS, 1992, p. 94).

“Façamos o homem à nossa imagem, conforme a nossa semelhança”.(GENESIS, cap. 1, ver. 26).

“Então formou o Senhor Deus ao homem do pó da terra, e lhe soprou nas narinas o fôlego de vida, e o homem passou a ser alma vivente”.(GENESIS, cap. 2, ver. 7).

Enkidu foi criado inocente, longe da malícia da civilização, vivendo entre as criaturas selvagens e compartilhando a natureza com elas:


“Ele era inocente a respeito do homem e nada conhecia do cultivo da terra. Enkidu comia grama nas colinas junto com as gazelas e rondava os poços de água com os animais da floresta; junto com os rebanhos de animais de caça, ele se alegrava com a água”.(SANDARS, 1992, p. 94).

“Eis que vos tenho dado todas as ervas que dão semente e se acham na superfície de toda a terra, e todas as árvores em que há fruto que dê semente; isso vos será para mantimento. E a todos os animais da terra e a todas as aves dos céus e a todos os répteis da terra, em que há fôlego de vida, toda erva verde lhes será para mantimento”. (GENESIS, cap. 1, ver. 29-30).

O rei Gilgamesh, sabendo da existência de Enkidu, incube uma missão a uma das prostitutas sagradas do templo da deusa Ishtar (deusa do amor e da fertilidade): seduzir Enkidu e trazê-lo para dentro das muralhas de Uruk. Enkidu deixou-se seduzir pela rameira e perdeu sua inocência, além de seu poder selvagem, tornando-se conhecedor da malícia do homem. Arrependido, lamenta-se, mas a rameira consola-o enfatizando as vantagens desta nova vida que está por vir:

“Enkidu perdera sua força pois agora tinha o conhecimento dentro de si, e os pensamentos do homem ocupavam seu coração”.(SANDARS, 1992, p. 96).


um fragmento da ep´péia de Gilgamesh


“Olho para ti e vejo que agora és como um deus. Por que anseias por voltar a correr pelos campos como as feras do mato?” (SANDARS, 1992, p. 99).

“Porque Deus sabe que no dia em que comerdes se vos abrirão os olhos e, como Deus, sereis conhecedores do bem e do mal.” (GENESIS, cap. 2, ver. 5).

Nesta comparação com a tentação no Éden, não identificamos diretamente os fatos, mas sim, as idéias. A prostituta sagrada, condenada também em outros livros da bíblia, pode ser compilada como o fruto proibido, a serpente e a própria Eva, com o poder de seduzir o homem e tirar sua inocência com falsas promessas.

Representação de Gilgamesh e Enkidu
Enkidu, já na cidade de Uruk, enfrenta o rei Gilgamesh em combate. Vencendo-o, é reconhecido pelo rei como irmão, pois este jamais havia enfrentado alguém com tamanha força. Formando-se então uma grande amizade que protagoniza grandes aventuras e tragédias ao longo da epopéia.

Gilgamesh e Enkidu partiram então para a floresta de cedros (provavelmente, o atual Líbano), onde enfrentaram o monstro Humbaba, a sentinela da floresta.

Este se irrita com Enkidu, por profanar a floresta sagrada dos cedros inferiorizando-o e humilhando-o com palavras semelhantes às palavras de Deus, ao condenar o homem por comer do fruto proibido. Novamente não vemos relação direta entre os fatos, mas uma linha comum de pensamento é verificada entre os textos onde, a profanação e a desobediência são punidas com a servidão:

“… tu, um mercenário, que depende do trabalho para obter teu pão!” (SANDARS, 1992, p. 119).

“… maldita é a terra por tua causa: em fadigas obterás dela o sustento durante os dias da tua vida”.(GENESIS, cap. 3, ver. 16).

“No suor do teu rosto comerás o teu pão, até que tornes à terra, pois dela foste formado”.(GENESIS, cap. 3, ver. 19).

Os heróis, com a ajuda de Shamash (deus sol, protetor de Gilgamesh), matam o monstro Humbaba cortando-lhe a cabeça. Fato que irritou o poderoso Enlil (deus da terra, do vento e do ar universal), que exigiu a vida de um dos heróis pelo insulto.

A deusa Ishtar, vendo a força e beleza do herói, apaixona-se por Gilgamesh que a despreza, provocando a cólera da deusa. Então, Ishtar enviou a terra, um monstro com a missão de destruir o herói: o Touro Celeste. Mas a dupla de heróis novamente é vitoriosa. Então, Enkidu zomba da deusa derrotada atirando-lhe pedaços do touro mutilado. Enlil enfurecido com a atitude do mortal decide enfim qual dos dois heróis deverá morrer. Enkidu então adoece e, sucumbindo à doença, impulsiona o rei Gilgamesh a sua missão final: a busca da imortalidade.

A primeira semelhança encontrada pelos tradutores das tábuas em escrita cuneiforme é a mais impressionante. Foi a mola propulsora de toda a discussão sobre a veracidade dos textos bíblicos, pois a descrição do dilúvio não só é a mais bem conservada tábua de toda a epopéia, mas a mais rica em detalhes e semelhanças com a descrição no Gênesis. Além de que, outras narrativas do dilúvio foram encontradas em forma de poemas isolados e com outros personagens, como as tábuas de Atra-Hasis, a Epopéia de Erra, e os textos do rei Ziusudra9.


Na epopéia, Gilgamesh parte em busca da imortalidade, e para isso, precisa obter este segredo dos deuses com o imortal Utnapishtim (Noé do Gênesis). Para encontrar o imortal, Gilgamesh enfrentou uma longa jornada, cheia de perigos e provações. Ao encontrar Utnapishtim, ouve que este não poderá lhe tornar imortal, mas poderá revelar ao herói como se tornara um e conta do dia em que os deuses, desgostosos com a sua criação (a humanidade), resolveram eliminá-la da terra:


“Naqueles dias a terra fervilhava, os homens multiplicavam-se e o mundo bramia como um touro selvagem. Este tumulto despertou o grande deus. Enlil ouviu o alvoroço e disse aos deuses reunidos em conselho: ‘O alvoroço dos humanos é intolerável, e o sono já não é mais possível por causa da balbúrdia.’ Os deuses então concordaram em exterminar a raça humana”.(SANDARS, 1992, p. 149).

“Viu o Senhor que a maldade do homem se havia multiplicado na terra, e que era continuamente mau todo desígnio do seu coração”.(GENESIS, cap. 6, ver. 5).

“A terra estava corrompida à vista de Deus, e cheia de violência”.(GENESIS, cap. 6, ver 11).


“Farei desaparecer da face da terra o homem que criei, o homem e o animal, os répteis, e as aves do céu; porque me arrependo de os haver feito”.(GENESIS, cap. 6, ver 7).


Ea (deus da água doce e da sabedoria, patrono das artes e protetor da humanidade), avisa Utnapishtim em um sonho das intenções de Enlil e orienta-o de como sobreviver à catástrofe que estaria por vir:


“... põe abaixo tua casa e constrói um barco. Abandona tuas posses e busca tua vida preservar; despreza os bens materiais e busca tua alma salvar. Põe abaixo tua casa, eu te digo, e constrói um barco. Eis as medidas da embarcação que deverás construir: que a boca extrema da nave tenha o mesmo tamanho que seu comprimento, que seu convés seja coberto, tal como a abóbada celeste cobre o abismo; leva então para o barco a semente de todas as criaturas vivas. (...) Eu carreguei o interior da nave com tudo o que eu tinha de ouro e de coisas vivas: minha família, meus parentes, os animais do campo – os domesticados e os selvagens – e todos os artesãos”.(SANDARS, 1992, p. 149-151).

“Faze uma arca de tábuas de cipreste; nela farás compartimentos, e a calafetarás com betume por dentro e por fora. Deste modo a farás: de trezentos côvados será o comprimento, de cinqüenta a largura, e a altura de trinta. Farás ao seu redor uma abertura de um côvado de alto; a porta da arca colocarás lateralmente; farás pavimentos na arca: um em baixo, um segundo e um terceiro”. (GENESIS, cap. 6, ver 14-16).

“… entrarás na arca, tu e teus filhos, e tua mulher, e as mulheres de teus filhos. De tudo o que vive, de toda carne, dois de cada espécie, macho e fêmea, farás entrar na arca, para os conservares contigo”.(GENESIS, cap. 6, ver. 18).


Enlil então envia uma tempestade de grandiosas proporções, fazendo com que toda a terra desaparecesse sobre as águas:


“Caiu a noite e o cavaleiro da tempestade mandou a chuva.(...) Por seis dias e seis noites os ventos sopraram; enxurradas, inundações e torrentes assolaram o mundo; a tempestade e o dilúvio explodiam em fúria como dois exércitos em guerra.” (SANDARS, 1992, p. 151-153).


“… nesse dia romperam-se todas as fontes do grande abismo, e as portas do céu se abriram, e houve copiosa chuva sobre a terra durante quarenta dias e quarenta noites”.(GENESIS, cap. 7, ver. 11-12).

E toda a humanidade foi exterminada:


“… agora eles (humanos) flutuam no oceano como ovas de peixe”. (SANDARS, 1992, p. 152).

“Assim foram exterminados todos os serem que havia sobre a face da terra …” (GENESIS, cap. 7, ver. 23).

Com o passar dos dias, a tempestade ameniza-se e o dilúvio começa a serenar:

“Na alvorada do sétimo dia o temporal vindo do sul amainou; os mares se acalmaram, o dilúvio serenou”.(SANDARS, 1992, p. 153).

“Deus fez soprar um vento sobre a terra e baixaram as águas. Fecharam-se as fontes do abismo e também as comportas dos céus, e a copiosa chuva do céu se deteve”. (GENESIS, cap. 8, ver. 1-2).

Após a calmaria do grande oceano que se formara, Utnapishtim solta uma pomba para ver se há terra firme para que então possa desembarcar:


“Na alvorada do sétimo dia eu soltei uma pomba e deixei que se fosse. Ela voou para longe; mas, não encontrando lugar para pousar, retornou. Então soltei uma andorinha, que voou para longe; mas, não encontrando lugar para pousar, retornou. Então soltei um corvo. A ave viu que as águas haviam abaixado; ela comeu, voou de uma lado para outro, grasnou e não mais voltou para o barco”.(SANDARS, 1992, p. 153).


“Ao cabo de quarenta dias, abriu Noé a janela que fizera na arca, e soltou um corvo, o qual, tendo saído, ia e voltava, até que se secaram as águas sobre a terra. Depois soltou uma pomba para ver se as águas teriam já minguado da superfície da terra; mas a pomba, não achando onde pousar o pé, tornou a ele para a arca; porque as águas cobriam ainda a terra. Noé, estendendo a mão, tomou-a e a recolheu consigo na arca. Esperou ainda outros sete dias, e de novo soltou a pomba for a da arca. A tarde ela voltou a ele; trazia no bico uma folha nova de oliveira; assim entendeu Noé que as águas tinham minguado de sobre a terra. Então esperou ainda mais sete dias, e soltou a pomba; ela, porém, já não tornou a ele”.(GENESIS, cap. 8, ver. 6-12).


Após a bonança, já em terra firme e grato ao deus Ea por ter lhe salvo a vida, Utnapishtim prepara um sacrifício aos deuses:

“Eu então abri todas as portas e janelas, expondo a nave aos quatro ventos. Preparei um sacrifício e derramei vinho sobre o topo da montanha em oferenda aos deuses”.(SANDARS, 1992, p. 153).

“Então Noé removeu a cobertura da arca, e olhou, e eis que o solo estava enxuto”.(GENESIS, cap. 8, ver 13).

“Levantou Noé um altar ao Senhor, e, tomando de animais limpos e de aves limpas, ofereceu holocaustos sobre o altar”.(GENESIS, cap 9, ver 20).

Enlil, furioso com Ea por ter permitido que um humano sobrevivesse e conhecendo o segredo dos deuses, viu-se sem alternativa que não a de transformar Utnapishtim em um imortal, para que sua maldição de que nenhum mortal sobrevivesse se completasse.

Gilgamesh desapontado por não ter tido sucesso em busca da imortalidade, prepara seu retorno para Uruk, mas é abordado pela esposa de Utnapishtim que, compadecida com o fracasso do herói, revela-lhe o segredo da imortalidade em que, nas profundezas do mar, havia uma planta maravilhosa, e quem a comesse, seria eternamente jovem. O herói então mergulha no mar profundo, ferindo-se, mas obtendo a tão desejado segredo.

Tomado de rara compaixão, Gilgamesh decide não comer sozinho o maravilhoso fruto, mas sim dividi-lo com os anciãos da cidade de Uruk. No retorno para casa, Gilgamesh é surpreendido por uma serpente marinha que lhe rouba a flor, perdendo para sempre o segredo da imortalidade:


“Se conseguires pegá-la (a planta sagrada), terás então em teu poder aquilo que restaura ao homem sua juventude perdida. (…) Vem ver esta maravilhosa planta. Suas virtudes podem devolver ao homem toda a sua força perdida. (...) mas nas profundezas do poço havia uma serpente, e a serpente sentiu o doce cheiro que emanava da flor. Ela saiu da água e a arrebatou”.(SANDARS, 1992, p. 160).


Apesar dos fins da ação de comer o fruto sejam diferentes (a morte e a imortalidade), podemos fazer uma analogia da função da serpente em roubar a imortalidade do homem: sendo tirando-lhe a oportunidade da vida eterna pela sua obtenção, como na Epopéia de Gilgamesh; sendo condenando-lhe a morte pela cessão do fruto ao homem, como no livro do Gênesis. Gilgamesh então ficou desolado e abatido, pois além de fracassar em sua missão, perdera para sempre o irmão Enkidu, restando-lhe apenas, melancolicamente esperar o dia de sua morte chegar.

No livro do Gênesis, não encontramos somente semelhanças com a Epopéia de Gilgamesh, mas com outros textos antigos, como o sumeriano Mito de Dilmum onde o deus Enki, o senhor das águas profundas e do abismo que suporta a terra; e Nintu, a virgem pura, deusa que presidia aos partos; habitavam sozinhos num mundo cheio de delícias sem que nada existisse além do par divino, caracterizando uma descrição muito semelhante do que seria e onde seria o jardim Éden:


“E plantou o Senhor Deus um jardim no Éden, da banda do Oriente, e pôs nele o homem que havia formado. (...) E saía um rio do Éden para regar o jardim, e dali se dividia, repartindo-se em quatro braços. (...) O nome do terceiro rio é Tigre; é o que corre pelo oriente da Assíria. E o quarto é o Eufrates”. (GENESIS, cap. 2, ver. 8-14).